Ele joga a caneta. O quarto -tem uma mesa no canto e alguma literatura e a Bíblia- fica escuro. João Batista encosta a porta. Vai pra sala. A gatinha vai do lado. É feiinha, mas a tem faz cinco anos e se acostumou ao pelo escuro falhado. Quando chegou as costas estavam vermelhas e descascando. Ele se estica na poltrona e pega o jornal de dois dias atrás. Dá uma olhada nas fotos e passa pelas notícias. Empurra pro lado. Madalena entupida de sacolas abre a porta.
- Me ajuda aqui João.
Ele se levanta e pega duas sacolas, Madalena entra e ele fecha a porta.
- Tentei escrever e não saiu nada.
- Uma hora ou outra você consegue.
- A mente de poesia saiu.
- Distrai a cabeça que tudo volta.
Madalena se move dum jeito bem mais duro. Vivem numa casinha de água furtada. Falta pro João um pedaço do indicador esquerdo.
Há um quadro grande de moldura marrom com filigranas bem no meio da sala. “A gente passou da hora se a filharada começa a morrer”. Ela está na cozinha limpando a mesa para o almoço e fica confusa com tantas cadeiras. Madalena e João Batista falam bem pouco, com medo de faltar assunto à noite. Ele, com a cabeça de lado no travesseiro, olhando a escrivaninha e a Bíblia, ela vendo mosquitos rodearem o abajur. O sono vai demorar. Madalena raspa o pé na perna porque o silêncio corta o coração. João Batista puxa algum assunto. Ela respira.
Os dois se conheceram meio sem querer.
Ia mancando nos sapatos de bico fino à casa de Madalena, que esperava no portão, e uma flor ele trazia e prendia nos seus cabelos. Ela sorria dum jeito leve, mostrando no canto esquerdo os dentes branquinhos, a boca meio torta. Madalena ficava muito bonita sorrindo assim.
João Batista declamava poesias. Ajoelhava-se e dizia de cor, sem nem tirar do bolso o papel manchado e dobrado bem pequenininho. Teve cócegas com os pelinhos finos do buço de Madalena acariciando a sua boca. João tinha o cabelo cheio de pomada e um vento ingênuo de fumo adoçou o nariz dela.
Desde que o filho mais velho morreu sente que a mulher desanima e ele vai desanimando, desanimando sem querer. Madalena busca, João tenta fugir. Sempre quis que ela morresse primeiro. É de vidro, está trincada. Ele aguenta. Madalena ia morrer sofrendo menos.
A mente de poesia sumiu. João Batista se movimenta devagar entre as bugigangas no quarto de forração azul. Ela põe na panela a rabada que ele gosta, e que agora faz mal.
O presente se tornou eterno e pesado. Os anos aumentaram as pernas, cresceram as mãos, deixaram o rosto mole e fácil de amassar, torcer, puxar, encolher e esticar, os braços secaram e o couro vem e vai. João mastiga as gengivas que têm o gosto do surubim que comeu numa fazenda. Ele e o pai. Foi uma das últimas vezes que se viram, foi uma das poucas vezes que o pai olhou pra ele e sorriu dando pro rosto aquele jeito besta e tão humano. O sorriso quase seco de seu Armando iluminado de satisfação.
Numa noite, a cem metros de casa, calçou a botina de bico aberto e o ar seminal da madrugada bateu nas bochechas. As estrelas brilhavam, a lua amaciava a ameixeira perto da estrada. Uma cobra foi rastejando pro mato, deixou a terra se afogando na noite livre. Lá longe clarões de aurora mostravam amanhecer nalgum lugar, trazendo cheiro das chaminés e da grama e do café soprando quente e dos tocos no fogão de lenha e João Batista apareceu na vendinha e tomou uma xícara, engoliu duas fatias imensas de pão e respirou. O rosto começava a se encharcar pelos olhos. Ele riu. Ergueu as mãos marcadas de enxada e riu de novo. O café escorria na garganta e esquentava o coração. A venda não era diferente da casa que estava deixando. Tinha as paredes cinza comidas de podridão. O balcão preto mal aplainado mostrava a tristeza santificada pela imagem de Nossa Senhora Aparecida acima da prateleira, a santa de olhos calmos e tristes.
Madalena se emburra pra gatinha brincando com um rato do lado de lá da janela. O vapor sai da panela de pressão e passa os dedos dentro da barriga e ela tira os pratos do armário. João vem, avança a boca para a testa mas volta; a timidez para de acanhar e a intimidade se esconde. Sabe que João a ama. Mas não precisa mais de toques. Só que sente falta.
João vai à calçada. Um motorista tenta acelerar um casal apaixonado.
Ela vestia vestidos de pregas rodados e se lavava com alfazema, esperando João. Ele vinha e declamava poesias de cor sem gaguejar, os cabelos afundados pelo chapéu soltando suor. Cheiro do seu homem. Ela esperava desde criança, o pai trazia doces, pegava no colo e se metia a contar histórias da cidade. O lampiãozinho queimando um óleo que fedia bastante e ela fungava o fedor misturado à cachaça do pai. A mãe brigava com Adão, que estava mimando demais a filha. Ele fazia de conta que não escutava. João dizia como a madrasta lambava as suas costas no pinto de boi ressacado e ela à noite escorregava as mãos na foto e chorava soluçando “pobre João”. Madalena pensa na mão dura e rachada do pai pegando um pedaço de pão e enfiando na panela e mordendo aquela fatia que pingava pela cozinha toda repimpando a cara de alegria.
Isabela e Fernando dão de ombros. Nem se viram pro velho na calçada e fecham os ouvidos pro motorista apressado. Os cabelos loiros encaracolam até o meio das costas. O motorista buzina e eles continuam no meio da rua, o velho está calmo e o motorista bufa. Se cansam e vão pra calçada, misturam os passos. As pernas se enroscam. Ele chuta o calcanhar, ela tropeça e belisca seu braço.
- Foi sem querer.
- Sei!
Ela fecha a cara, ele fala baixinho no ouvido. Passa a língua no pescoço. Ela ri. Balança os cabelos perfumados e o narigão dele coça de amor. Entram na casa e Isabela vai pro quarto. Fernando tira do bolso e coloca no meio do caderno dela um bilhetinho de cantos amassados. Está vendo ele pela fresta da porta. Depois que for embora Isabela vai virar o caderno de cabeça pra baixo e chacoalhar até cair. Duas ou três vezes por semana vai encontrá-los, escritos em letras esquisitas e cheios daquelas palavras que a gente não sente vergonha quando está apaixonado. O que Fernando escreve faz traquinagens no coração dela.
As fotos na estante o deixam feliz. É Isabela a menina com chuquinha vermelha! Vê se pode a cara de arteira, essa Isabela! Ela volta e passa os dedos na orelha dele. Aperta os olhinhos azuis e escancara o beiço num sorriso nada recatado. Fernando se levanta e vai atrás, Isabela põe a mão na boca do atrevido que pediu um beijo antes até de perguntar nome. Empurra segurando a gola da camisa e traz ele de volta e sapeca outro beijo. Ela tem riscos fortes no rosto rosado.
- Eu te amo – ele diz.
Dá outro beijo e arrasta Fernando à cozinha, pega leite condensado e chocolate.
- Faz.
Ele cozinha uma panela de brigadeiro e Isabela dá uma colherada pra ele outra pra ela, vendo TV. Tudo ia parecer tão brega e infantil se eles, que passam na calçada arrastando suas vidas, topassem com Isabela enrolada no colo de Fernando e as mãos dele brincando na pinta negra do braço dela!
A tardinha vem chegando e o céu fica menos azul. Os dentes brancos e compridos de Isabela de cuspezinhos brilhantes. E Fernando com cara de bobo.
- A gente vai casar. E não vou deixar mais você sair de casa. É só minha.
- Tonto!
A gargalhada se fecha, vai se fechando e Isabela entorta as sobrancelhas.
- Se meus pais tivessem ido o que a gente ia fazer agora?
- Eu ia estar na casa de outra menina comendo brigadeiro e falando que amava ela.
- Seu besta! Tô falando sério.
Isabela abraça os joelhos e enfia a cabeça no meio das pernas. Fernando fica alisando a almofada de crochê. O retrato na estante de quando Isabela tinha três anos e uma falha enorme. Faltava um dente. Tropeçou e engoliu. Está rindo e é a foto que Fernando mais gosta.
- Eu te amo. Não chora.
- Se tivessem ido embora nem você me amava nem eu ia te amar. Já disse pra outra menina que amava?
- Claro que não!
- Fala a verdade. Nem quando era criança?
- Ah, criança sim. Mas não vale.
- Por que não? Por que não?
Ele está andando de volta pra casa. As pessoas falam baixo, roupas de trabalho, bicicletas velhas, enferrujadas. Carregam sacolas gigantes no guidão. Há pacotes e outras vêm atrás com mais pacotes. Criancinhas em uniformes de creche na garupa fazem birra e Fernando dá risada pra elas. Ficam com vergonha e ele vira um pimentão. Até ontem jogava água quente nos gatos. Agora ama. Ri de novo e de novo fica vermelho. Chuta uma pedrinha.
Um jornal quase inteiro espera Aílton e o casal lesmando no meio da rua! Ela é bonita por trás e ele parece forte. Que pena, esses pobres diabos! De esguelha observa o senhor na calçada tranquilo, cuca refestelada na árvore imensa que peneira o Sol dum lado ao outro. Ele rumina a vida como se Aílton valesse menos e vai ver vale ou esse senhor com muitos anos a menos buzinou pralguém se sentindo só e com inveja. A inveja é casta.
Sônia fingiu orgasmo a noite passada e ele a foi estocando compassadamente meio sem querer. Sônia tem os cabelos curtos e as unhas de esmalte discreto. Aílton era esquisito e desengonçado, de óculos de aros grossos. Sônia tem filhos, cachorro, casa, máquina de lavar, empregada, TV, carro.
Aílton solfejava poesias e Sônia o edulcorava com seus imensos olhos claros. Ela é bonita. E Aílton, com seu carro, está entre o senhor e o casalzinho. Aílton está no meio dos dois. Ele, seu carro e seu jornal. O homem calmo esperando o sol esfriar embaixo duma imensa árvore, jogando olhos leves e espertos pra ele e pros amantes. Andam no meio da rua e pouco se preocupam se as pessoas têm pressa e se podem fazer algo diferente de amar.
Aílton buzina outra vez. Sônia um dia escreveu uma carta longa, mais de dez páginas rasuradas. E Aílton sorriu no quarto, quietinho. Sônia chorava enquanto escrevia. Depois de escritas possivelmente censuraria sua própria impudicícia ou que aquelas palavras se tornariam nada, não mais seu sentimento quando Aílton lesse a carta, mas o sentimento dele usando o punho dela pra reafirmar coisas que ele imaginava. E ao escrever esvazia seu coração. Mas era o que tinha a fazer. Ele a ama. Mas há uma edição faltando bem mais da metade! Pro senhor e pros jovens restam seus problemas. Pra uns, tão efêmeros e apinhados de esmero que se morre hoje e amanhã se levanta de olhos alegres e beija o dia com ternura; pro outro todo dia é belo e sorumbático porque é dia.