domingo, outubro 26, 2008

Evangélico

Ando sem saber o que faço na tarde de um domingo morno e mole. Passo em frente ao portão dos fundos. Paro. Fico, com o vidro abaixado, olhando a poeira que dança em caracol. Ela carrega as ruínas da minha criancice cheia de pirraça.
Destruíam a pequena casa de madeira em que viviam uma mulher perneta e sua família. Estava sempre ela com longo vestido azul, barra descosturada, pele tisnada pelo Sol, arqueando um sorriso lânguido no vão dos dentes. Falava com a boca caída à esquerda, como se as palavras tivessem peso demasiado desproporcional. Cabelos lavados com sabão caseiro, desgrenhada.
Parecia feliz. Mimetizava-se com a casa, com o mato sem cuidados, com as carteiras quebradas. Talvez construa sua "felicidade" em outro canto, talvez já se tenha esquecido do azul claro dominante nas tábuas carcomidas de sua antiga morada, a que ela chamava "lar", como se a expressão pudesse pintar aquelas vigas, ripas e caibros podres com o galão 3,6 lts da perenidade.
Havia uma seringueira a poucos metros. Sentávamos nas raízes, nos faceávamos enquanto o professor saía à cata da lição dormente na enorme mesa branca, em que todas as outras tinham de encerrar. Possuo sérias dúvidas de seu provável esquecimento.
As paredes que me dão as costas encontram-se mais fodidas que de costume. Faixa marrom toldada por um bege pardacento.
Quadra gasta, bola velha, nossa diversão. Enfileirados, roíamos as unhas enquanto não nos mandavam manter a camisa rasgada de malha ou tirá-la. A primeira e, quem sabe, a mais marcante segregação.
Dominávamos o lugar. Ninguém conseguia meter o dedo na nossa garganta, nos pôr para fora, nem mesmo a polícia nos finais de semana. Polichinelo apto a brincadeiras! Ótimas recordações: a quebra de vidraças e a zoeira na cara da PM.
Tenho vontade de pisar novamente ali. Desejo pueril, limpo da assepsia insossa do meu escritório. Quero sentir entre os dedos o passado. Mas já pesa mais do que minhas calejadas mãos conseguem suportar. Claudico. Treze anos é pouco tempo, historicamente falando. Menos quando a foto semicarcomida do mural já foi para a lata do lixo, artimanha de zelador cioso no ofício. Displicente, porém, com os rostos outrora libertos dos sulcos do amadurecimento.
Ah, amadurecimento! No momento em que o Sol deixa de despejar sua cor amarelada sobre as coisas que chegam a nossos olhos, crescemos, começamos a sobreviver.
Importa quase nada o que estes imensos blocos de concreto roído representaram a mim a não ser a mim. Se amanhã ultrapassar o umbral, me deterão perguntando: Está perdido?” “Precisa de informação?” “Veio matricular o filho (como se tivesse um)?” “É louco?”
Sinto-me pesado em excesso neste carro. Nem ele é mais meu. Perdi antes de ter.

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