sábado, fevereiro 07, 2009

Liberdade

Atrás do desenho torto no vidro, a pedra mexida com os dedos centrifugava e ia sumindo. Rodava, rodava, rodava, para acabar. Como todos os movimentos que Paulo vira em 65 anos. Os pneus tinham camada mole de borracha que fritavam no asfalto. Na Europa, a borracha era ainda mais mole. Rodas entortavam-se. Paredes rachavam de um lado ao outro, telhados envergavam. “Somos incompetentes”. O uísque evaporava. Paulo tomou outro gole e lambeu os lábios. Soltou esgares. “Já não tem o mesmo gosto.” Em frente à casa sua, a gurucaia, ocada por cupins, estalava. “Deus também. Só conseguiu se fazer imortal.”
- Faltam passarinhos aqui.
- E o que isto tem a ver? - perguntou Margarida, sustendo uma bacia de plástico rachada com roupas vindas do varal.
- Se não há pássaros, o hino é mentiroso - redarguiu. Tirou do bolso um maço amassado de Hollywood. Acendeu, tragou. O fôlego não permitia mais segurar por tanto tempo. Fez um biquinho e, aos poucos, esvoaçaram círculos.
- Coloque o dedo em um. Faço outro para mim.
- O que foi, está delirando?
- Se nosso casamento também se desvanece, o que tem de errado?
- Você antecipou bastante o fim dele.
- A gurucaia está se despedaçando. Existem pássaros aqui como os tem São Paulo. É preciso rasgar o hino.
- As coisas são diferentes. Não se pode...
- Claro, eles sempre têm razão - suspirou.
Sobreviver era fácil, bastava calar a boca. A poucos metros de sua casa, uma fábrica espadanava fuligem que enegrecia o capô do carro. Havia ido lá, conversado com Rui, auxiliar de um auxiliar. “Não resolveu? Vá à Casa do Povo. Lá, dizem os meios de comunicação, temos vez.” Seguiu o conselho estúpido. Na Casa do Povo descobriu que a Casa do Povo era Casa de alguns Povos.
- Dê-me a garrafa. Estou com sede.
- Incha seus pés. Se está mesmo com sede, beba água.
- Que loucura! Tomar esta porcaria que me arrebenta! Já está bom deixá-la tocar meu corpo...
- Fale baixo, quer que alguém o escute? Ninguém sabe se é...
- Claro. Todos ganham bem com os órgãos podres das pessoas daqui.
Tinha câncer. A cada gole de uísque era como se levasse um soco no baço. Os porres, no entanto, não eram extasiados numa autoflagelação tosca nem existia qualquer princípio de santificação. Achava, simplesmente, o uísque franco. A água, por outro lado, chegava branca, inodora, pingava no copo...
- Seus olhos estão fundos - Margarida apoiou os dedos no encosto do sofá em que ele estava sentado. Girando, girando, o ventilador rangia no teto. Se caísse, esmagaria cabeças. “Saia.” Estalou os beiços, mordeu-os, semiabriu a boca. Resignou-se, soltando apenas um som gutural.
Num caderninho preto de capa dura, Paulo rabiscava contos e poesias. Ordinário, como a maioria dos escritores. “As chaminés, arqueadas pela fumaça tóxica cuspida sem discrição, injetam câncer nos cérebros.” “Sou o parasita que corrói seu corpo, arrebento suas hemácias, infesto de pus seu rosto.” Ao olhar os olhos brilhantes de Margarida, abdicava-se de berrar no meio da rua. Desde que o médico lhe observara a irreversibilidade da doença, pés, mãos e cérebro estavam ali de idiotas que eram. Margarida, porém, viveria. Se mexessem naqueles papéis, cobrariam dela. Da forma como as coisas foram postas - falando mais de si do que da porra das coisas nas quais queria meter o pau, na podridão indecifrável da cidade operária, nas massas insossas se rastejando todos os dias ao pó obnóxio - quase ninguém entenderia. Quando se está fodido, gritar no banheiro resolve.
- Num filme com 90 minutos, 30 são gastos para o final. A proporção da vida teria de ser a mesma.
- Você me faz tremer.
- É como se você não estivesse aqui. Os móveis, a televisão, as janelas, a rua, tudo está tão... Tão longe!
- Toque-me o rosto. Nunca vou sair do seu lado.
- É diferente. Eu estou ao seu lado, só que você está a quilômetros de mim. Quilômetros! Nem minhas mãos percebo mais - espalmou-as nas pernas e, lentamente, se retesou. Encanecidas, com os dedos enrugados e trêmulos. Gentes daquela idade, normalmente, tinham forças. Crianças pulavam amarelinha atrás da janela amarronzada. Cachorros latiam, tentavam morder carros. Casais balançavam-se, roçando os rostos tépidos. Sobre as cabeças, uma imensidão embrutecida, dobrada, apta a rebentar. Os nimbos abaixavam-se a cada ano. Pousou o dedo no vidro. A existência morta e morna daquela massa de areia cozida também fugira.
- Entre o começo e o fim da morte talvez esteja o princípio da liberdade!
- Talvez o quê?
- Pode ser que haja pessoas que nunca conhecerão a liberdade - estalou os dedos magros e longos. - Vou tomar banho. Vá ao mercado e compre iogurtes e aquelas coisas que adora. Hoje é um grande dia para você.
- Por quê?
Não respondeu. Chegou ao quarto, ergueu os braços e tirou do guarda-roupa o violão com cordas de náilon para não machucar. Sorriu molemente, enquanto apoiava o instrumento nas coxas e ensaiava um RÉ maior.
- There is a town in North of Ontario, with dreams comfort memory to spare...
Desfez o acorde. Estendeu a mão sobre as cordas, apagando a vibração de forma seca. “Idiotice tocá-la.” Escorregou-se no lençol. Quando criança, deslizava-se sobre o cetim, abria os braços e as pernas. O friozinho da cama abrandava sua solidão infantil. Mamãe engatinhava no quarto e pulava com a boca aberta em sua barriga, fazendo cócegas. Era muito bonita. Alta, cabelos longos, loiros, anelados. Dedos delgados e frágeis, pele macia, casta. Ao morrer, com 75 anos, havia se transformado num montinho de ossos enrolado em um saco de estopa encarquilhado.
O lençol de algodão vagabundo não esfriava tanto. Sentou-se. Na penteadeira, a escova de Margarida cheia de cabelos. Do lado direito, seu chapéu panamá desbotado. Havia duas semanas que não se escanhoava. “Tenho de evitar o trabalho dos outros.”
Seus olhos salgavam a água fria saraivando o corpo. De volta ao quarto, tirou da caixa a espingarda velha com a qual se divertia anos atrás no clube de tiro. Limpou-a. Descalçou-se. Apoiou a soleira no chão. Esticou vagarosamente o pé. Retorceu-o e encaixou o dedão na base do gatilho. Descansou o queixo na ponta fleumática do cano. Fechou os olhos. Abriu-os. Escutara o som metálico do portão.

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