quinta-feira, março 19, 2009

Você e eu

Se eu lhe dissesse que continuo tão atolado neste barro de cor desprezível e me pego notando frequentemente a estupidez desta mancha sangrenta, desta terra pisada, molhada, desta chuva que cheira a esta terra maldita, você soltaria uma sonora casquinada, fitar-me-ia os olhos, me chamando de capeta.
Talvez dispense me encarar, sinta vergonha ao rever as formas de meu rosto nas fotos tiradas poucos anos atrás. Só restam riscos. Duvido que tenha sido tratada diferente.
Lembra o quanto zoávamos o funcionário-padrão? Ele, suas opiniões reacionárias tacanhas, aptas a defender qualquer homem que envergasse um terno risca de giz, qualquer pessoa que subvertesse a quintessência do homem, que lhe usurpasse a individulidade nos uniformes largos de malha e calças jeans surradas. O filho da puta casou com uma suculenta, linda e gostosa que foi minha companheira de classe durante uns dez anos. Sempre quis comê-la, bolinar-lhe os seios enormes, enroscar o falo naquele sorriso metalino. Você deve ter percebido, nunca levei jeito com as mulheres. Foda-se! A questão é que o cara está bem para caralho, enchendo a pança de caviar e acariciando a enorme barriga com uísque importado. Eu? Por que pergunta? Bom, estou aqui. Tomo cachaças horríveis que rebentam buracos no meu estômago, pretejo o sorriso de cera em cigarros vagabundos. Vendi a alma também. A diferença é que a ele pagaram bem mais; a minha não valia um saco de estrume, nem dava para dizer que trocada por merda seria caro.
Bem capaz que nem seja inveja. Envolve tantas pequenas coisas e quiproquós estúpidos transmutados num objeto abjeto; tem dias que a aposta é feita de antemão, basta apenas torcer pela cara ou pela coroa. Amarrados nas mesmas assombrosas e pesadas correntes, temos de arrastá-las e despedaçar rochas que, a cada cacetada, soltam brotos cinza viçosos, mas sem gosto e sem graça. Enquanto ele soube mercadejar a execrável existência de forma mais convincente -fez um leilão de resultados seguros-, me embaralhei nesta inútil, fedida, estúpida e pavorosa cabeça. Joguei-a nas mãos do primeiro prestidigitador que me acariciou as faces e enxugou as gotas salgadas num vagabundo truque de cartas.
Você e eu rindo em meio a discussões sobre Sartre, Kundera, Foucault e Nietzsche, embolados com Bíblia, Paulo Freire, Platão, Maquiavel, embriagados em Kafka, Bukowski, Goethe, Victor Hugo e Dostoievski. Sentava-me a seu lado; você virava a cabeça, esparramando um sorriso lânguido e macio nos lábios finos, moles, pendidos à esquerda. Olhos amendoados no sorriso. Coberta até os tornozelos por saias; da cabeça pendiam ondas tenras de algodões respigados de ouro.
É, eu sei! Repisando lembranças inocentes do tempo de crianças-adultas, as imagens se tornam lascivas, ganham traços que nem fazíamos ideia. Imagem e acontecimento, antípodos! Já assistiu a um show gravado ao vivo? Gravado ao vivo, como pode? O sexo talvez dormisse mais na gônada de quem via do que nas minhas bolas ou na sua mortal sensualidade triangular.
Pansexuais! Fodíamos com carros passando, livros se abrindo, árvores assobiando, roupas se lambendo. Bucólico toque e pronto. Trepa-se com Deus e o Diabo.
Nós ruímos assim que o fogo verde se esvaiu no cérebro. Puritana, você gritava nunca precisar dele. E o usava transmutado, dissimulado na sua beatitude. Eu? Quero para caralho. Só parei de correr atrás dos segundos desperdiçados, da vida bruxuleando. Torro os nervos no cronometrado e odiento diagrama manhã-tarde-noite, manhã-tarde-noite, manhã-tarde-noite; se me arrancassem os braços continuaria balançando-os alegremente.
Quanto vale um sonho, ou quanto pagam no sonho de um sonho ou na mera imagem esfumaçada de um sonho? Qual é o preço de uma vertigem luminosa onírica? Baixo. Nas barraquinhas alquebradas ao bafo do ar pesado e ardido nesta terra em que só há verão tem um monte. Compram de penca. Idiotas sempre existem. Eis a prova.
Eu? Eu o quê? O bastante já, não acha?
Bom, digo uma coisinha a mais: se pudesse engatinhar de novo, colocaria um cano serrado na boca. Os miolos esvoaçariam a metros de distância. Sua mão caberia tranquilamente no oco (estou dando gargalhadas estrondosas; não me resta grande coisa).

A uma amiga

5 comentários:

Thiago disse...

É cara...

Não sei o que pensar.
Entendo certas partes e me perco em outras que são mais desconexas...
Mas tudo se encaixa...

Estou começando a evoluir...
Abraço!!!

Cássio Gonçalves disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Cris Carvalho disse...

gostei da casa!

besos

Anônimo disse...

Creio que só existe um caminho para este comentário: ressaltar o quanto as palavras podem ser belas quando manipuladas por quem as respeita. Seria obviedade demais acrescentar que você dá um banho em muito escritor editado e já esquecido?

Gonzaga Britto disse...

Ora! Por que parou? Parou por que? Rapaz, não fique tanto tempo sem postar. Que timidez é essa? Ou você é perdulário? Não deixe seus leitores sem a beleza dos seus textos. Vamos lá - a platéia, impaciente, aguarda...