domingo, junho 13, 2010

Ela e ela

Os carros deslizam e os barulhinhos de pedras soltas morrem nos meio-fios mosqueados de asfalto. Faz pouco tempo que refizeram a rua em frente. E as pedrinhas, até elas fogem daqui. Ouço crianças, cacetadas ecoando no portão e um menino grita gol, provavelmente meu sobrinho. Ele bem que serviria para ser o chefe da turma. Dois moleques um em cima do outro não chegam a sua cabeça. Meu sobrinho é tímido e canhestro como eu fui. É um dia que morre triste. Do meu lado ela me afaga o rosto, minha barba e não fala nada. De vez em quando se vira para mim e para. Não olha com medo de pegá-la. Sabe que nestas horas detesto alguém me encarando. Será que ela sente a imensa solidão que coleia nos meus rins? Será que alguém pode algum dia ser feliz olhando da varanda o dia morrendo numa imagem cinza sem neblina, mas cinza e sorumbático como o dia em que ela me fez perder aula por causa da imensa tristeza impotente de conquistá-la? Estamos juntos e estou parado. Meu pai se sujou a manhã inteira e parte da tarde. A casa fedia à água podre. Ele ficou a manhã inteira e parte da tarde e amanhã tem de chamar um encanador para fazer o serviço. Agora assiste ao jogo e diz “tudo bem, não consegui.” Faz tempo que estamos juntos, só que pouca coisa adiantou todos estes anos.
Quando o ar para e deixa esta massa cinzenta que tremeluz faróis o dia fica mais pesado e seco sobre as costas. Um dia pesa assim e fico meio que bobo e ingênuo, dizendo coisas absurdas e falando palavras doces quando a única coisa que queria era gritar e urrar e correr e deitar nalgum canto. Mas ela está aqui e veio exclusivamente para mim. Não tenho o direito de lavá-la na mesma água suja em que estou afundando. Palavras entrecortadas, sumidas, zunzuns ciciando nesta falta de vento, autoanulação inconsciente que escorre devagar pelas ruas, sobe as calçadas e invade as camas, uma enchente mesmo, e olha que aqui há 40 nascentes, mas nenhuma que se possa dizer rio, nenhuma que algum dia vai encher e apodrecer as doces lembranças de paredes empoeiradas.
Duas senhoras sobem e uma menina duns 15 anos, gostosinha, as acompanha malemolente. Estão com os cabelos úmidos grudados nas faces redondas, a menina deve soltar um cheiro doce quando anda, ela vai se desvencilhar delas na primeira chance e daí em diante cada qual em seu caminho e ela vai procurar as alegrias de noite cinzentas como este dia que morre e esta noite que chega, mas quem sabe nunca vai perceber toda a desolação porque estará ocupada com outras coisas, como a cor da calcinha que o cara cheio de espinhas na cara gosta. As pessoas se ajeitam aos domingos para morrerem com aparências suportáveis.
Domingo, para mim o domingo pode ser considerado o dia mais pardacento da semana como para a maioria das pessoas, isto é clichê já. Todo mundo gosta menos de domingo, mas para mim é o dia que eu detesto mais. Não porque ache importante viver cinco ou seis dias enfiando meu cérebro no teclado de computador criando frases de efeito e ainda esperando que esteja a idoneidade num material jornalispublicitário que os jornais, digo aqueles veículos que merecem respeito pelos longos anos de serviços prestados e blábláblá, publicam sem nem arquear as sobrancelhas ou soltar um pigarro como faço a qualquer pergunta que não queira responder porque a resposta não diz nada a ninguém. Mas como ia dizendo nos dias de semana a imbecialidade duma rotina me faz trabalhar ansiosamente pelo domingo e, quando ele chega, sou obrigado a dizer: “só isto?”. Um frio rude dança nas minhas orelhas e elas se encarnam e crescem e aliso a barba calmamente esperando a segunda começar. Assim espero de novo o domingo com aquele desejo estúpido e tosco que tenho tido nos últimos doze anos pelo menos, desde quando a beijei e daí em diante tudo seria diferente, e a minha casa foi pintada durante este tempo várias vezes, mas sempre da mesma cor.
A menina já está andando mais rápido que elas. A blusa de uma das velhas reverbera a luz opaca do poste em frente da minha casa, a outra está com uma bata verde cor de abacate, minha namorada diz. Estão apressando o passo e gritam para a menina que apenas balança mais a bunda grande e redonda. Se desconfiassem do desejo me chamariam de estuprador. Estuprador não. Pedófilo. Mas daí tudo o que eu pensei e aconteceu iria à merda junto com a mão do meu pai no buraco que ele abriu sem resolver porra nenhuma a manhã inteira e parte da tarde. Pouco borrariam as calças pelas coisas que ela fez e está fazendo ainda agora quando uma Ranger dum vizinho que detesto desce estocando meu cérebro com batidas desritmadas. Ela pede, pede algo que eu não posso, ela está do meu lado, mas mesmo se pudesse ela não pediria a mim, há gentes e gentes mais interessantes e meu Uno vermelho todo rabiscado já dorme com o motor frio ao fundo.
A poeira cinza espessa vai sumindo, um rosto negro se estica lá nas construções altas, vai se esticando voluptuoso e meu coração aperta. Não quero que a nuvem cinza morra porque daí tenho de entrar e tomar banho, assistir à TV e fazer todas as coisas que todo mundo faz.  

8 comentários:

Cássio Gonçalves disse...

Eh... Alguns intervalos podem causar certo despropósito. (talvez a única desvantagem em se parar de fumar). Apesar de que o cair da tarde de um domingo pode agravar a situação. rsrs

**** disse...

Ahahahaha. Pra falar a verdade eu naquela de não achar vantagem alguma em parar de fumar. Ahahaha. Abraços!

Serbão disse...

lembrei de Macunaima, quando vc fala em 'sorumbatico'.
dias nublados trazem, este 'banzo'...
abç

**** disse...

Dias nublados sempre trazem um esgotamento cerebral.
Abraços, Serbão!

Luciana Andradito disse...

meu predileto. até agora.

**** disse...

Só posso lhe dizer que é um dos mais sinceros.

Cássio Gonçalves disse...

Caraleo, deletei seu comentário sem querer... hehe.
Valeu

Cecília França disse...

É intenso, posso te ver enquanto leio esse conto. Beijos.