sábado, setembro 04, 2010

Notas menores sobre amor - Final

Marcos analisa o Gol cinza de Henrique. Pneus novos. A aliança na mão esquerda dele já gasta. Ele a mostra com certo orgulho enquanto corta e diz algumas palavras doces sobre a mulher. Marcos tem os dentes agora. Ele os tem. Só a ele agora. E deve pagá-los. Tem pagado faz dez anos e nos últimos três os paga todo dia, mesmo quando fica em casa na frente da TV, o sol entra pela janela, a sala amarelada, ele se levanta e estica a cortina, mas Luciana vem e a abre.
Gustavo tinha 14 anos. Era grande e gordo. Embaixo de óculos de lentes grossas e armação escura, passava os recreios no meio do pátio. Quando soube que Dona Clotilde morrera Luciana se lembrou do jardim. Saiu da loja pra ser merendeira. Dentro da balaustrada de nódoas verdes uns minguados girassóis não se viravam mais entre a manhã e a tarde.
As crianças estavam correndo pra quadra descoberta do lado da casa. Amélia as encarava com as mãos convexas sobrepostas no cabo da enxada. Arfava sentindo o gosto gelado do suor escorrendo, pulando do queixo. Mais gritaria pra rebentar dentro da cabeça.
- O que a senhora tá fazendo?
- Vou acabar com isto aqui. Tá horrível!
- Não!
Adiantou-se pondo as mãos em cima das de Amélia, apertando-as.
- Eu cuido pra senhora.
- Depois você esquece e fica essa coisa no fundo da minha casa.
- Eu cuido. Prometo.
Era um velho jardim, um jardim em que enterrara Douglas e Sharmila e era doído pra ela pensar neles quando voltava, o jardim se tornava uma bolha de ar denso, mas ela voltava e voltava amarfanhando Douglas, Sharmila e Marcos. Douglas e Sharmila não estavam ali, nunca os vira por perto dali, quase certo que estavam longe do colégio e um do outro. O jardim cultivara a misantropia dela, e agora tomava fôlego nele. Era como se o fazendo vicejar de novo estaria livre pra deixá-lo lá e voltar ao recreio, às conversas monossilábicas com Douglas e Sharmila, a se sentar entre eles, esquentando os braços, abraçada aos braços deles.
O marido trouxera algumas sementes do orquidário da mulher de Henrique, a mulher que o marcou com a aliança cuja reverberação queima Marcos a alguns passos longe, encostado no muro e pensando nos dentes enormes e brancos, novos, de Luciana. Ele deve dentes a ela, já pagou, e deve. Orquídeas multicolores, Henrique havia dito. Ajoelhada entre as covas ela sentiu os pés num tênis branco encardido dobrar a quina da casa. Gustavo parou a encarando através das lentes embaçadas, um saco de chips na mão esquerda, a direita na boca, os dentes esfarelados. Ela continuou jogando terra nas covinhas e Gustavo tirando e colocando a mão na boca, o barulho de ruminação compassado. Assim que terminou, Luciana apoiou a palma da mão direita no joelho, se levantando.
- Você devia estar na classe já faz tempo.
- Tô comendo.
- Tá mastigando merda – disse pegando o saquinho de arroz em que Henrique pusera as sementes. – Por que não vai pra sala?
- Tanto faz lá dentro como aqui fora. Pra mim tanto faz.
- Tanto faz o quê?
- Sou gordo e feio e só. Escola é pra quem é bonito.
- Besteira sua, escola é pra todo mundo. Feio ou bonito. Ou você pensa que só existe médico bonito?
- Não tô falando de médico, tô falando de escola.
Gustavo era feio e gordo. Feio e gordo e Luciana esticava os olhos pra vê-lo amassar o saquinho num barulho irritante. Marcos não era bonito, Douglas tinha o rosto estourado e os olhos pendendo em lados opostos, Gustavo era feio e gordo.
- Detesto todo mundo da minha sala.
- Por quê?
- Por que são bonitos.
- Impossível só ter gente bonita na sua sala.
- Não. Tem eu também.
- Tô falando dos outros.
Ela iria sair daqui a vinte minutos e em casa o marido a esperava, almoço na mesa.
- Você disse que detesta o pessoal da sala porque são bonitos. Você me detesta também.
- Você é merendeira.
Marcos entrou na igreja. Três ou quatro mulheres ajoelhadas em frente ao manto azul de coroa, a imagem de Nossa Senhora Aparecida. Estava escura às três e quarenta, os vitrais esfumaçavam a luz fina de sol que rastejava na porta principal se afogando na vasilha prata de água benta.
Padre Nilson o observara do altar. Não conhecia o rosto, mas assistira a João enquanto almoçava. Sentando com os braços lânguidos, a cinta no flanco, Marcos se esparramou. Nossa Senhora Aparecida, mãe de Deus, mãe delas, não mãe dele. Nossa Senhora que a todos abençoa e guarda, não o faz dormir nem o cobre à noite. Mãe do Salvador, o Salvador que escolhe a quem salvar, não a ele. Luciana estava longe agora e Marcos queria estar com ela.
Apoiado numa bengala fina de madeira rude Padre Nilson desceu os degraus e foi às mulheres. Ciciou um pouco e duas andaram pra sacristia. Voltou-se a Marcos dando estocadas compassadas e suaves no chão, sentou-se.
- Meu filho! Meu filho!
A criança já velha trancava os lábios frementes, os olhos turvados e ardidos.
- Meu filho! Meu filho!
Marcos começou a rir. Rilhava e ria baixinho com as mandíbulas renitentes.
- Meu filho! Como Deus chora agora te vendo assim! Ele te vê perdido e atordoado, com sede Dele ou de alguma coisa ruim.
- Quem sabe das duas?
Luciana encostou-se à parede da casa. Dona Clotilde se encostava igual, conversando com ela.
- Tá bom. Se eu sou merendeira você pode conversar comigo com certo orgulho, e falar a verdade. É como se dissesse a ninguém. Sou uma merendeira.
- Tenho 14 anos.
- Ótima idade. Que vontade que tenho de voltar pros meus 14!
Gustavo lhe mostrou os dentes tingidos de fiapos amarelos, forçando o pescoço pra trás.
- Retardada, retardada! É uma desgraçada!
Já estava quase na hora de ir pra casa encontrar Marcos, encontrá-lo lá, parado, com a mesa posta, as panelas fumegantes e um sorriso babado, os braços apoiados na cadeira, o queixo sobre os braços. Sempre esteve ali e ela sempre voltava, pra casa, pra louça suja, pra calçada crua de marcas, pra bicicleta de aros amarronzados e pedais estalantes, pra ele e pra se manter na vida que sempre soube, desde quando Douglas não pediu muito, desde quando Rogério e Felipe lhe tiraram bastante.
- Por que você tá com tanta raiva assim dos seus colegas?
- E... Eles ficam tirando sa...rro de mim, me chamando de vir... virgenzi... nho e falando que... que meu... pin...to... vai dar ca...lo na minha mão, de tan.... tan...
- De tanto que toca punheta?
- É... é.
- E as meninas?
João não tinha imagens. Fizeram apenas algumas do lado de fora enquanto as crianças iam embora, filmando seus pés. Só um nome, mas não se lembrava de quem era, era apenas um nome. Queria falar bastante, mas só tinha um nome vago, e ele ficou meio amuado. A repórter, morena, alta, rosto anguloso, de nariz adunco e pernas grossas, contava as conversas que havia tido com pessoas que trabalhavam lá. A tal mulher tinha começado fazia pouco tempo, trabalhava antes numa loja de roupas, as outras a achavam quieta demais. João fechou os olhos.
- Pode continuar.
A voz dela ia falando lá bem baixinho - enquanto o esforço para ficar mais aguçado ia minguando - de como os pais do menino se revoltaram e foram à porta da delegacia pra...
- Dormiu, coitadinho!
- E então? O que vão fazer com ela? – perguntou o cinegrafista.
Já sabia o que iam fazer dela, estava junto com Carina quando o delegado disse o que ia acontecer, escutou tanto quanto ela. Carina recontava e sua boca se retorcia, os olhinhos afundados lacrimejavam excitados.
- Vão mandar ela pra Sabáudia. Foi pega em flagrante. Mas talvez sai em pouco tempo, o advogado dela é bom pra cacete. Fico só pensando como vai fazer pra pagar. Ele é caro! Vamos lá?! Já tá quase na hora da primeira edição. Acorda o João aí.
- Acorda você. Tô fora!
- Meu filho! Meu filho! – Padre Nilson estendeu os braços no pescoço de Marcos.
- Nunca pensei que voltaria aqui deste jeito. Nunca pensei que Ele me veria assim.
Um homem que Padre Nilson conhecia sem nunca ter visto. Sabia que se chamava Marcos e que a mulher se chamava Luciana. Poucos homens entravam na igreja à tarde e mesmo em seus desesperos percebiam na fé que se arrasta do domingo durante a semana um gesto extremamente sensível e feminino. Pra entrarem ali só se o desespero tivesse se queimado dentro dum redemoinho de desolação e dor estrondeante e inaudível, uma dor que precede a resignação.
- As meninas são as mesmas de quando você era menina também.
Gustavo alisou o chão com o pé esquerdo. Luciana se aproximou, apertando seu braço.
- Abaixa as calças.
- O... q... q... quê?
Ele tentou se soltar, mas ela o segurava com força, com tanta força que arrebentava suas bochechas.
- Deixa que eu abaixo.
- Vo... você... é... uma... me...rendeira!
Ela tocou na glande e a apertou. Gustavo de uma gozada. Luciana riu.
- Não fica triste. É normal acontecer com moleques da sua idade.
Do bolso de trás da calça tirou o avental da cozinha e limpou o pau do menino. Ajoelhou-se e começou a escorregar a língua da glande às gônadas.
Marcos andava com os pés tortos entre as marcas da calçada, sentindo os encontrões das pessoas que vinham lado a lado, sentindo as cabeças sardônicas. Empinou o nariz assim que o sino marcou três horas. Não ia à igreja desde quando esfregou na cara da mãe a batina de coroinha, querendo mandá-la enfiar no rabo junto com seu Deus. E agora ele teve vontade de nunca ter saído dali. Devia continuar igual. Os mesmos móveis escuros e longos, as mesmas paredes pintadas de bege com detalhes marrons; o átrio mantinha suas árvores e pombas.
- Alô!
- Oi, pai! Você viu quem é a putinha que foi pega com o moleque?
- Tô sabendo da história, vou falar aqui, mas não sei bem certo quem é esta mulher. Esse povo que trabalha pra mim é uma cambada de coçadores de saco. Só sei que foi uma tal de Luciana.
- Não uma tal, foi a Luciana. Tá lembrado dela? Por causa dela eu tive aquela suspensão do colégio.
Com os pés distantes João se levantou e deu três pulinhos. Bateu na mesa. Caía no seu ouvido os sons nasalados de Anderson. Era então Luciana, a quem disse certa vez que ia foder a vida na primeira chance?
- Carina, vem cá!
- Oi!
- Você sabe o que sobre esta mulher?
- Eu sei o que disse. O marido se chama Marcos, é barbeiro. Estão casados há algum tempo e ele ama ela. Ela  trabalhava antes numa loja, e todas as funcionárias da escola a achavam bem calada.
- Seguinte: quero que vocês incitem as mães. Pra esta tarde, viu? Conheço umas que a gente pode levar pra frente da escola e fazer barulho. A da criança também tem que estar lá. Vamos fazer disto uma novela, tenta falar com o marido. Eu prometi que acabaria com a vida dela pro meu filho.
- Pro seu filho? Por quê? Ele era amigo da... da família do moleque?
- Outra história.
- O... que vocês estão fazendo! – Amélia berrou erguendo os dedos finos e truncados ao rosto. Gustavo se atrapalhou com as calças e caiu, ele serpenteava e Amélia alternava os olhos assombrados a ele e a Luciana.
- É esta merendeira! Esta merendeira puta! – ele fugiu pro pátio e ela se sentou no chão. Amélia chegou perto, soltou um tapa e cuspiu.
- Todo mundo sabe da minha desgraça, padre. Todo mundo sabe que a minha querida Luciana fez aquela coisa horrível!
Padre Nilson passou a mão nos cabelos de Marcos e lhe deu um beijo como um pai dá no filho pra ver se divide com ele um pouco do desespero, ele que é pai e sabe que nenhum desespero chega a ser tão enorme quanto a própria continuidade dos dias, os dias que se enrolam uns nos outros e caminham pacatos de mãos dadas, mofando os braços de quem ainda tenta usá-los. Padre Nilson tinha uma criança ali, padre Nilson tinha um filho, um filho uivando, vociferando o calor de Deus, o calor de Deus pra tirar o calor dos homens dos ombros, mas do calor deles Deus não podia livrá-lo, teria sido sarcasmo se tivesse plantado naquele coração trincado e sangrando Deus na forma de pecado, Marcos ia sofrer mais quando acordasse noutro dia e olhasse pro lado vendo Luciana numa cela de nove metros com outras 15 mulheres.
Com o avental ela limpou o canto da boca. Passou as costas da mão nos olhos. Amélia havia subido, quem sabe à diretoria? Gustavo correra pra diretoria, quem sabe? Ajeitou os cabelos. Douglas podia desculpá-la agora. Podia enxergá-la como alguém que soube ver onde estava e o que lhe cabia. Não tinha certeza de que ele ouvira dizer que ela se casara com um barbeiro que estava chegando em casa pra fazer o almoço e esperá-la numa cadeira rangente de espaldar duro, erguendo o queixo sorridente entre uma garfada e outra. A história ia grassar, Douglas ia entender que havia sido ela e que ela o havia visto sob seus olhos caridosos renovados na castidade. Luciana sorria, inspirando o ar quente e meio úmido da manhã no pedaço de sombra da cumeeira da casa. Ficou de pé e contornou a casa. Viu a diretora descer ombreada por dois funcionários. Ela viu e deu passadas longas firmes e retas.
Quem vê Marcos parado entre as duas barbearias aguentando os quilos destes três anos sente pena dele. Entre elas ele puxa um cigarro e dá uma tragada fraca e curta. Luciana está de volta pra casa, faz um ano que voltou. Pessoas passam e Marcos olha pra baixo, pros sapatos. Estão lustrosos, Luciana os engraxou. Ela está com os dentes bonitos, os mesmos dentes de muito tempo atrás, dez anos, mas naquela época poucas vezes sorria pra ele. Ele entende que ela está livre, livre pra sorrir e olhar com orgulho, orgulhosa de estar ali, ela, Luciana. Ela tem sorrisos novos que sorriem só pra ele e ele poucas vezes retribui. A mulher está livre mas ele não e se odeia por isto. Luciana não rogou coisa alguma, nem na primeira vez que ele observou o rosto entrecortado nas barras de metal escuro e frio. Não clamou nada, ele acreditou que estava certo, que tinha de estar do lado dela, havia jurado. Ela tem sorriso novo pra ele e ele sabe que deve pagar. Ela mantém as contas da casa em ordem fazendo doces pra pessoas que se desconfiassem que fosse ela não comprariam. Henrique e padre Nilson entenderam quando resolveu ficar com ela, mas o veem empanturrados de comiseração e ânsia. Ele está entre as barbearias e precisa dalguma grana. Apaga o cigarro e desce raspando as costas na parede. Agachado, não tem nada mais baixo pra olhar. 

2 comentários:

Cecília França disse...

Meu querido irmão, que leitura maravilhosa no meio de um dia cansativo.
Tire o nome "sem sugestão", deixe apenas "sobre o nada". Embora vc escreva sobre tudo, ou sobre nada mesmo...
Adorei!
Beijo, saudade.

**** disse...

Tô escrevendo nada sobre nada. ahahah... Sempre é bom ter você aqui minha irmãzinha. Muitas saudades suas. Beijos.