sexta-feira, abril 22, 2011

Sobre pais e filhos

- Acho que a gente fica por aqui! – ele esticou as barras da calça, esfregando os calcanhares, mantendo a cabeça erguida pro lado das palmeiras que chacoalhavam no vento teimoso. - Pisei algumas vezes na bola com sua mãe. Só que sempre a amei. Muito! 
- Não. Não é pela mãe.
- É um gosto suave de vingança.
- Vingança é pra quem não tem discernimento. E outra pessoa não tem nada a ver com o que me faz sentir ou deixar de sentir. E até sinto. Só não sei até que ponto é um sentimento relevante. Não tem nada com o que o senhor fez com a mãe ou comigo. É meu.
Perto deles passou um velho com olhos parados e mãos tremendo, boca tisnada pelas balas que mordia antes de sair à caça nas noites em que era responsável por manter as coisas e as pessoas em ordem, -os anos em que era policial militar-, atrás uma enfermeira gorda cheirando a ranço do fogão em que beliscara nacos de carne remelenta pra quem como ele havia perdido os dentes. Ela empurrava a cadeira de rodas sem se esforçar, só com a mão esquerda, a direita segurava um pano de prato que de vez em quando levava à boca do velho e enxugava a baba caindo. 
- Tomara que não acabe assim.
- Não vai. É orgulhoso demais. 
- Vingança é pra quem não discerne? Que bobagem!
- Todo mundo é filho da puta com todo mundo. 
- Vou morrer igual a esse velho. Meu orgulho pede que você carregue isso. 
- Que mentira!
- Você se lembra como a sua mãe morreu santificando meu amor por ela?
- Não é pela mãe.
- Aquele velho só é dez anos mais velho que eu. As enfermeiras dizem que está definhando desde que o filho parou de visitá-lo. Brinca de morrer. 
- Quero tornar as coisas práticas, do jeito mais fácil possível. Procurei o melhor lugar. A sua aposentadoria não ia dar conta disso aqui. 
- E ainda assim limpam a boca da gente com pano de prato!
- Vou reclamar. Só um segundo - Era a mulher no telefone perguntando se voltava  pra casa. “Vou demorar um pouco ainda. Tchau!”
- Quando vim pra cá você disse que era apenas até me recuperar e parar de beber. Me sinto bem.
- Disse que tentaria achar uma casa bacana, com uma empregada. Mas aqui é melhor. 
- Não adianta.
O prédio fora reformado, gesso novo e uma galeria de ar condicionado esticando seus dedos pelos quartos. O jardim em que eles iam acabando com o tempo -um até gostando, vendo o gramado felpudo, as palmeiras e, ao fundo, uma cerca de pinheiros gigantescos separando a parte mais verde da grama da rua, uma sebe informe e cerrada, gostando, era um lugar agradável pruma tarde de sábado- tinha sido refeito havia poucos meses, as flores amarelas e lilases e brancas empurravam seu cheiro anasalado, eles estavam no banco confortável de madeira grossa talhada por um artesão de longas barbas brancas, rosto rosado e rechonchudo. O artesão ia e ficava batendo papo com os internos. Seu ateliê cheio de coisas, de tantas que eram davam tão pouco, e ele tinha de continuar nelas e nunca ia completar a quantia que amealhava uns 30 anos, dinheiro pra poder ficar ali, sossegado e até que enfim sentir como pode ser aconchegante e preguiçoso o banco que fazia durante três décadas e nunca terminava. O imenso banco, se terminasse ia ter dinheiro pra não ir ali só de visita. Ele, que tinha mulher, dois filhos, cinco netos e uma mesa cheia de macarrão e de sorrisos sinceros e demorados aos fins de semana.
- Não adianta o quê?
- Reclamar.
- Do quê?
- Da mulher limpando a boca.
- Ah! – respondeu ele, beliscando o cérebro que roncava por ter posto num canto confortável quem nunca tinha ligado pra isso nem dado conforto nenhum a ele, apesar da grana enchendo os bolsos antigamente. – Claro que sim! Custa quase 10% do meu salário manter o senhor aqui. 
- 10%! Por uma enfermaria de mortos! Meu Deus! 
- O senhor já viu o laguinho do outro lado? É perfeito ao pôr do sol. 
- Não. Dá medo. 
- Como sabe se nunca foi?
- Um lago é um lago. Vai fazer medroso se pensar que existe. É por causa da cobra. 
- Não há cobra. 
- E tirar o prazer de quem vê a gente morrendo, mas tão devagar que nem dá a impressão de que morre! 
- Ninguém quer que o senhor morra. 
- Se quisessem ver pessoas nascendo estavam numa maternidade. Não temos mais serventia. Inútil dizer alguma coisa. Ela vai continuar limpando a nossa boca no pano de prato e mordendo a nossa carne.

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