
Cheguei chutando pedrinhas, enquanto tropeçava nas calçadas purulentas estourando feito espinhas no rosto de um moleque punheteiro cursando o ensino médio. Estava escuro já. Aqueles que estavam uns dez dias pendurados giravam vertiginosamente em seus eixos observados por urubus -durante segundos, achei que quisessem gritar “redenção, salvação”. Contei 30 urubus. Lustrosos, penas penteadas, asas enormes, bicos atilados, olhos. Ah, os olhos! Duas bolas pretas tristes, mas certeiras -olhos “você não escapa”, olhos “entrou aqui, agora rebole”, olhos “seu fado é o mesmo de todos”. Jamais brilhariam por outra coisa.
Eu empurrava um carrinho monstruoso de macroatacado. Debaixo dos 100 ganchos com o S forçado, nenhuma mancha, nenhum fio de cabelo; apenas o cheiro de álcool e enxofre. Olhava em todas as direções, de todos o jeitos, girando as órbitas, rodando o pescoço. Quase saí com torcicolo.
Bati as rodas numa garrafa esquecida, que virou e "comeu" parte de uma linha amarela instantaneamente. Nem deu tempo de mostrar a Marcos meus traços interjetivos e aflitos de santa criança chata encapetada, e faxineiras já estavam correndo desinibidas -linhas autoritárias no rosto- com esfregões a tiracolo, para limpar minha merda. Caralho, o esquecido era eu! Uma loira de peitos enormes e suculentos esvoaçava o branco de seu avental e o vermelho sintético de seus dedos injetando líquido daquele recipiente em outro buraco, logo abaixo do gancho, no espaço dela. Marcos cravou as unhas em meu antebraço, arrancado couro:
- Sei lá por que você se perde neste emaranhando de coisas iguais - disse ele, com a porra da razão. - Precisa ficar mais atento. Você atropelou a placa “Interditado” - esticou os dedos e rodou um que tinha ficado com o dorso de frente ao corredor esgarçado, corroído e inexplicavelmente limpo em que passavam clientes.
- Quanto tempo?
- Dois meses - retorceu o ombro, adiantou-se dois passos, estacando rente a meu pé. - Sua pergunta era outra, eu sei - alongou de novo os dedos, mas, desta vez, levando-os a minha boca. Contraí, estalei os lábios, enojado. - Foram uns dez dias.
- Só! - gritei. Aquele cara era o avatar do demônio. - Apenas dez dias para se acostumar com tudo aquilo!
- Trabalho, meu caro.
Remoendo meu cérebro -socando ideias alheias ou não infensas à mais estúpida mimetização das pessoas-, decidi vazar, esquecer aquela babaquice, comprar a merda da memória.
Ao atravessar corredores mais largos, “a ala dos excelsos”, como pavoneou o vendedor sem esforçar para vender porra alguma, empaquei no gancho 247, à esquerda. Encarava o produto por cima dos ombros ossosos e lascivos de Marcos. Espadaúdo, orelhas pequenas, mãos menores ainda. Tinha olhos cinzentos, mas brilhavam.
- Ele pensa?
- Claro que não! - disse Marcos, se virando com uma risada cuspida pelo canto da boca. - De qual você está falando?
- Na sua frente.
- Este aqui? - apontou para o grandalhão meio esgrouviado.
- Sim.
- Boa escolha rapaz. Leve-o, está barato. Só 600.
- Por que fica balançando os pés?
- Ah, é pelo pé que se mede a esperteza. Quanto mais os pés se mexem, melhores resultados você conseguirá.
- Faz sentido para cacete!
Fazia mesmo, sem zoação. Ali, cerzida em cada um a garrafa de ácido sulfúrico que alimentava a cratera grotesca na nuca.
- A gente os deixa no sistema porque são mais frescos. Você vai ganhar a estrutura, precisa mantê-lo nela ao menos 24 horas - afirmou, analisando a etiqueta. - Depois forneça uma garrafa de 72 em 72 horas. Funciona do mesmo jeito de um celular - apressou-se, ao ver o ponto de interrogação gigante alternando os olhos em canos e parafernálias de sucção grudadas no pescoço sorumbático, mas imperativo.
- Onde arranjo ácido sulfúrico?
- Água de bateria de automóveis. Muitas lojas na cidade vendem isso, até em oficinas de beira de estrada você encontra. Porém, recomendo a desta marca - rodou para o meu lado o rótulo. - É a melhor.
- Desça-o.
Marcos escorregou seus braços pela cintura e o ergueu. Oscilando, ajustou os pés para não se arrebentar com as costas no chão.
- Está bom mesmo, hem? Pesado!
Recostou a cabeça numa almofada e alisou cuidadosamente as pernas, apoiando-as no assoalho acolchoado do carrinho. Caixas de leite não dão tanto trabalho!
- Qual é a garantia?
- Seis meses. Mas tem prazo de validade. Três anos, depois não serve mais. Daí tem de trazê-lo para a gente mandar ao desmanche.
Tremenda idiotice gastar grana naquela bosta, então! Apoiei as mãos no queixo enquanto Márcio escarrava explicações mal-humoradas. Iria me apegar à coisa -sou sentimental para caralho, até com embalagens de Trident. E o meu dinheiro?
-... compensa totalmente.
- O quê?
- Rapaz, possuo clientes que já estão no quarto. Garanto a você que não haverá arrependimento. Zeloso, rápido, obediente, prestativo. Existem botões aqui - inclinou-o pelo tórax e roçou o indicador nas costas. - Você controla as funções.
Se todo mundo os esporrava depois de três anos, porque comigo seria diferente? É claro, sabia do sentimentozinho sacana que rolaria -culpa mesmo- quando fizesse isto. Se mandasse a empregada, nem tanto.
- Pago 400.
- Quatrocentos e cinquenta.
- Aceita Mastercard? É débito.
- Naturalmente.
A um amigo
- Sim.
- Boa escolha rapaz. Leve-o, está barato. Só 600.
- Por que fica balançando os pés?
- Ah, é pelo pé que se mede a esperteza. Quanto mais os pés se mexem, melhores resultados você conseguirá.
- Faz sentido para cacete!
Fazia mesmo, sem zoação. Ali, cerzida em cada um a garrafa de ácido sulfúrico que alimentava a cratera grotesca na nuca.
- A gente os deixa no sistema porque são mais frescos. Você vai ganhar a estrutura, precisa mantê-lo nela ao menos 24 horas - afirmou, analisando a etiqueta. - Depois forneça uma garrafa de 72 em 72 horas. Funciona do mesmo jeito de um celular - apressou-se, ao ver o ponto de interrogação gigante alternando os olhos em canos e parafernálias de sucção grudadas no pescoço sorumbático, mas imperativo.
- Onde arranjo ácido sulfúrico?
- Água de bateria de automóveis. Muitas lojas na cidade vendem isso, até em oficinas de beira de estrada você encontra. Porém, recomendo a desta marca - rodou para o meu lado o rótulo. - É a melhor.
- Desça-o.
Marcos escorregou seus braços pela cintura e o ergueu. Oscilando, ajustou os pés para não se arrebentar com as costas no chão.
- Está bom mesmo, hem? Pesado!
Recostou a cabeça numa almofada e alisou cuidadosamente as pernas, apoiando-as no assoalho acolchoado do carrinho. Caixas de leite não dão tanto trabalho!
- Qual é a garantia?
- Seis meses. Mas tem prazo de validade. Três anos, depois não serve mais. Daí tem de trazê-lo para a gente mandar ao desmanche.
Tremenda idiotice gastar grana naquela bosta, então! Apoiei as mãos no queixo enquanto Márcio escarrava explicações mal-humoradas. Iria me apegar à coisa -sou sentimental para caralho, até com embalagens de Trident. E o meu dinheiro?
-... compensa totalmente.
- O quê?
- Rapaz, possuo clientes que já estão no quarto. Garanto a você que não haverá arrependimento. Zeloso, rápido, obediente, prestativo. Existem botões aqui - inclinou-o pelo tórax e roçou o indicador nas costas. - Você controla as funções.
Se todo mundo os esporrava depois de três anos, porque comigo seria diferente? É claro, sabia do sentimentozinho sacana que rolaria -culpa mesmo- quando fizesse isto. Se mandasse a empregada, nem tanto.
- Pago 400.
- Quatrocentos e cinquenta.
- Aceita Mastercard? É débito.
- Naturalmente.
A um amigo
2 comentários:
Nossa.
Normalmente, eu entendo, ao menos, um pouco dos seus posts, normalmente, entendo tudo, mas esse...
Não entendi absolutamente nada!!
Ou eu não estou em um estado pleno da mente...
Mas vou fazer a cabeça e lê-lo de novo pra ver se eu entendo alguma coisa.
Abs!!
Isto aí. Quando se faz a cabeça as coisas são mais fáceis.
Abraços
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