quinta-feira, março 12, 2009

Frigorífico

Havia mais ou menos 300 ganchos refletindo -inteiramente ou não- uma luz intensa e fria. Dois terços estavam vazios talvez só fizesse horas; as faxineiras, suas esponjas e a gosma pálida e transparente indicavam. Antes de tudo isto começar pensei em meter os 500 paus que sobraram das férias em memória e placa de vídeo. Só que Daniel entrou na jogada e me tirou da letargia. “É um processo mecanicista, simplório demais; melhor comprar um como o meu, faz tudo o que o computador faz, e com mais perfeição. É claro que ele precisa de um computador, mas vai saber aproveitar as limitações do seu.” Na paulada é difícil acreditar que simples formas macilentas substituam uma DDR 3 e uma Geforce 9600 GT. Só que minha cabeça se contorceu de uma forma retardada, deu um nó na minha paranóica certeza afásica, que estourou no cesto mofado de camisas, calças sociais, ternos, camisetas, bermudas, meias rasgadas, do meu banheiro encardido e incompleto.
Cheguei chutando pedrinhas, enquanto tropeçava nas calçadas purulentas estourando feito espinhas no rosto de um moleque punheteiro cursando o ensino médio. Estava escuro já. Aqueles que estavam uns dez dias pendurados giravam vertiginosamente em seus eixos observados por urubus -durante segundos, achei que quisessem gritar “redenção, salvação”. Contei 30 urubus. Lustrosos, penas penteadas, asas enormes, bicos atilados, olhos. Ah, os olhos! Duas bolas pretas tristes, mas certeiras -olhos “você não escapa”, olhos “entrou aqui, agora rebole”, olhos “seu fado é o mesmo de todos”. Jamais brilhariam por outra coisa.
Eu empurrava um carrinho monstruoso de macroatacado. Debaixo dos 100 ganchos com o S forçado, nenhuma mancha, nenhum fio de cabelo; apenas o cheiro de álcool e enxofre. Olhava em todas as direções, de todos o jeitos, girando as órbitas, rodando o pescoço. Quase saí com torcicolo.
Bati as rodas numa garrafa esquecida, que virou e "comeu" parte de uma linha amarela instantaneamente. Nem deu tempo de mostrar a Marcos meus traços interjetivos e aflitos de santa criança chata encapetada, e faxineiras já estavam correndo desinibidas -linhas autoritárias no rosto- com esfregões a tiracolo, para limpar minha merda. Caralho, o esquecido era eu! Uma loira de peitos enormes e suculentos esvoaçava o branco de seu avental e o vermelho sintético de seus dedos injetando líquido daquele recipiente em outro buraco, logo abaixo do gancho, no espaço dela. Marcos cravou as unhas em meu antebraço, arrancado couro:
- Sei lá por que você se perde neste emaranhando de coisas iguais - disse ele, com a porra da razão. - Precisa ficar mais atento. Você atropelou a placa “Interditado” - esticou os dedos e rodou um que tinha ficado com o dorso de frente ao corredor esgarçado, corroído e inexplicavelmente limpo em que passavam clientes.
- Quanto tempo?
- Dois meses - retorceu o ombro, adiantou-se dois passos, estacando rente a meu pé. - Sua pergunta era outra, eu sei - alongou de novo os dedos, mas, desta vez, levando-os a minha boca. Contraí, estalei os lábios, enojado. - Foram uns dez dias.
- Só! - gritei. Aquele cara era o avatar do demônio. - Apenas dez dias para se acostumar com tudo aquilo!
- Trabalho, meu caro.
Remoendo meu cérebro -socando ideias alheias ou não infensas à mais estúpida mimetização das pessoas-, decidi vazar, esquecer aquela babaquice, comprar a merda da memória.
Ao atravessar corredores mais largos, “a ala dos excelsos”, como pavoneou o vendedor sem esforçar para vender porra alguma, empaquei no gancho 247, à esquerda. Encarava o produto por cima dos ombros ossosos e lascivos de Marcos. Espadaúdo, orelhas pequenas, mãos menores ainda. Tinha olhos cinzentos, mas brilhavam.
- Ele pensa?
- Claro que não! - disse Marcos, se virando com uma risada cuspida pelo canto da boca. - De qual você está falando?
- Na sua frente.
- Este aqui? - apontou para o grandalhão meio esgrouviado.
- Sim.
- Boa escolha rapaz. Leve-o, está barato. Só 600.
- Por que fica balançando os pés?
- Ah, é pelo pé que se mede a esperteza. Quanto mais os pés se mexem, melhores resultados você conseguirá.
- Faz sentido para cacete!
Fazia mesmo, sem zoação. Ali, cerzida em cada um a garrafa de ácido sulfúrico que alimentava a cratera grotesca na nuca.
- A gente os deixa no sistema porque são mais frescos. Você vai ganhar a estrutura, precisa mantê-lo nela ao menos 24 horas - afirmou, analisando a etiqueta. - Depois forneça uma garrafa de 72 em 72 horas. Funciona do mesmo jeito de um celular - apressou-se, ao ver o ponto de interrogação gigante alternando os olhos em canos e parafernálias de sucção grudadas no pescoço sorumbático, mas imperativo.
- Onde arranjo ácido sulfúrico?
- Água de bateria de automóveis. Muitas lojas na cidade vendem isso, até em oficinas de beira de estrada você encontra. Porém, recomendo a desta marca - rodou para o meu lado o rótulo. - É a melhor.
- Desça-o.
Marcos escorregou seus braços pela cintura e o ergueu. Oscilando, ajustou os pés para não se arrebentar com as costas no chão.
- Está bom mesmo, hem? Pesado!
Recostou a cabeça numa almofada e alisou cuidadosamente as pernas, apoiando-as no assoalho acolchoado do carrinho. Caixas de leite não dão tanto trabalho!
- Qual é a garantia?
- Seis meses. Mas tem prazo de validade. Três anos, depois não serve mais. Daí tem de trazê-lo para a gente mandar ao desmanche.
Tremenda idiotice gastar grana naquela bosta, então! Apoiei as mãos no queixo enquanto Márcio escarrava explicações mal-humoradas. Iria me apegar à coisa -sou sentimental para caralho, até com embalagens de Trident. E o meu dinheiro?
-... compensa totalmente.
- O quê?
- Rapaz, possuo clientes que já estão no quarto. Garanto a você que não haverá arrependimento. Zeloso, rápido, obediente, prestativo. Existem botões aqui - inclinou-o pelo tórax e roçou o indicador nas costas. - Você controla as funções.
Se todo mundo os esporrava depois de três anos, porque comigo seria diferente? É claro, sabia do sentimentozinho sacana que rolaria -culpa mesmo- quando fizesse isto. Se mandasse a empregada, nem tanto.
- Pago 400.
- Quatrocentos e cinquenta.
- Aceita Mastercard? É débito.
- Naturalmente.

A um amigo

2 comentários:

Thiago disse...

Nossa.

Normalmente, eu entendo, ao menos, um pouco dos seus posts, normalmente, entendo tudo, mas esse...
Não entendi absolutamente nada!!
Ou eu não estou em um estado pleno da mente...
Mas vou fazer a cabeça e lê-lo de novo pra ver se eu entendo alguma coisa.

Abs!!

**** disse...

Isto aí. Quando se faz a cabeça as coisas são mais fáceis.
Abraços