domingo, abril 05, 2009

Santíssima Trindade

As mãos grandes e grossas desenham na toalha um monstro preto distorcido no pano chanfrado. Os raios da televisão aureolam-Lhe a cabeça, dissimulando o sorriso caído à esquerda na mordedura torta e escrota, pintando em Seus cabelos brancos um contorno vermelho esquizofrênico; sangue de dentes atilados. Ninguém se arrisca a conversar coisa alguma.
Deus, quando fez o Mundo, escolheu as merdas que o Mundo iria fazer. E aquela bosta toda só saiu porque Ele quis. Beijou Jesus com sua boca arrogante e traidora e disse: “Querido filho da puta, vá morrer sob o sol escaldante de uma nação seca.” O Espírito Santo, Ele o colocou no colo e lhe cantou canções de ninar. Sente o hálito fresco do Espírito ainda toda manhã, quando lhe dá bom dia na cama.
Se meu pai virar as costas a mim, o mando à merda. Talvez não. Talvez sinta a indiferença consoladora como sinal de carinho. Vá saber.
- Ele pensa muito em mim - ela diz, pensando mais Nele que nela.
Eu estou agora esticado no sofá alisando a barriga, torcendo o fio do bigode. Nunca tive muitos pelos. Aos 25 anos, fiapos disformes pretejam-me o rosto marrom. Comecei a sujar de sangue a navalha aos 12, aconselhado pelo meu irmão oito anos mais velho. Quanto mais raspasse, dizia ele, mais cheia minha barba ficaria. É rala, não vai passar disso. Por preguiça, não me esconhoo.
Todos os almoços são metricamente iguais aqui. Não existem discussões. Circunspectos, os cinco atêm os ouvidos às piadas sem graça de Deus, a Seus dias enfadonhos no trabalho, tempo que Ele pretende transformar em mantra tingido com cores lúgubres irisadas. Acredita ser felicidade.
Eu me lembro das contendas que amiúde tenho com meu pai. Tolas, na maioria das vezes. Cada um segura seu carretel de ideias e argumentos esfalfando-se para convencer o outro de suas pseudointelectualidades. Terminamos estendo as mãos, complacentes, sorrisos assoprados por dois bons amigos que entendem a necessidade de que as convicções -por mais intrínsecas e cegas- sejam postas à prova ocasionalmente. Se jogássemos nosso relacionamento embaixo de um toldo protetor e escuro, interjecionando a voz surda, ficaríamos basbaques com a hipocrisia que mela a coisa toda, charlatanice seminal nos escombros aleatórios, no ricto besta, no faniquito chique, na dentada torta no pedaço mole de nossos corações.
A quase 600 quilômetros longe do meu velho, o relógio dá pancadas. Suas batidas reverberam, chacoalham-me a cabeça. Os móveis não rangem à noite, a televisão tem seu volume máximo no mínimo. Toda sinuosidade lasciva arrebenta na porta de vidro vigiando pessoas ao redor. Quase nenhum dos seis é assunto; só o Espírito Santo cresceu à sombra imponente desta Árvore centenária de mãos grandes e dedos pequenos, de barriga volumosa e branca, de nariz adunco.
- Eu não posso forçá-Lo a nada. Tenho de me virar.
Estou admirando a compleição tristemente bela e resignada de Jesus. O Espírito Santo chega. Deus ao seu lado. Estão contentes.
- Venham ver nossos carros novos - o Espírito chama.
Meu Jesus pula do sofá, agitado. Sua vida me parecesse ordinariamente vagabunda quando se satisfaz na alegria imbecil alheia. Nós: solidariedade cega e egoísmo claudicante.
Ela e eu nos topamos num labirinto centrifugante sem rotas de saída. Queria só comê-la. E me atordoei num recalque que andava sem alarde e articulava frases fugidias, bruxuleantes. Amei primeiro suas expressões atadas e pensamentos dispostos num corredor escuro, de paredes marejadas a óleo, duras, fedendo ranço. Estou agora tão apegado a ela, tão preso a seus olhos pálidos -olhos que embaçam qualquer “hei”, qualquer expectativa de futuro. Tento salvar Jesus. Amo-o no meu ateísmo insano. Tento salvar Jesus. Meu ódio a Deus e ao Espírito Santo brota cheio de verde.
- Nossa, que bonito! - meu Jesus fala.
Dois carros. Dois carros comprados com os pregos rasgando a mão fina e macia, os pés pequenos e delicados. Dois carros pagos com a ignorância de quem se exulta na burrice amodorrada, de quem a empana na redenção de um ateu egoísta, desgraçado e controverso -de um ateu que se comisera com seus passos extáticos, divinos. É-me pesado de mais carregá-lo, salvá-lo. É-me pesado demais esquecê-lo; urubus analisam sua porca e idiota coroa.

7 comentários:

**** disse...

Caro, Britto!
Obrigado por seus comentários no post anterior. Muito obrigado mesmo.
Acho só que não tenho tanto para me dignar a ser perdulário. O fato de eu não postar antes se resume na palavrinha idiota "trabalho".
Meus dias se transformaram numa bagunça só, ultimamente. Tenho tido poucas horas de sossego - e então leio meu Faulkner.
Estou tentando me organizar. Tentando arrumar as coisas. Minha cabeça está uma bateria carregada de ideias. Mas é tão difícil fazer sobrar um tempinho para colocá-las no Word e depois transplantá-las aqui!
Abraços, grande amigo cáustico. Você é a soda em pessoa. Você, sim, tem talento de sobra.
Até mais.

Gonzaga Britto disse...

Assim que eu gosto: iconoclástico. Ferino. Sem papas na língua, até porque a língua (a escrita e a falada) é o meio de transporte do espírito falante que existe em todos nós e que, em você, ejacula preciosismos linguísticos admiráveis. Preste atenção: seus textos (estes já publicados no blog e outros que, tenho certeza, virão por ai) estão formado a trajetória de um livro muito, muito bom. Junte tudo, daqui a um ano (não tenha pressa), revise, corte aqui e ali, emende, junte, refaça, transborde tudo novamente, jogue fora, faça de novo - e pronto. Voilá - está pronto o seu livro. Se a sua cabeça é uma bateria de idéias nunca deixe que ela se esgote, mesmo com toda essa aporrinhação do cotidiano. Ejacule tudo aqui - a merda, a beleza, a felicidade, o horror, tudo. Nòs, que te lemos, agradecemos, comovidos.

Cris Carvalho disse...

o nome da menina é Cris tbm!

besos

:D

**** disse...

É... o duro é saber quem vai querer publicar tanta merda, Brittão! rsrsrs
Abraços

Cecília França disse...

Você há de convir que um blog como este não pode ficar sem nome, não é? Vou pensar em algo para te sugerir.
Beijos, irmão.

GUGA ALAYON disse...

Forasteira, se vc fizer uma sugestão ele já pode mudar o nome pra com sugestão. ahahaha

**** disse...

RSRSRS... BOA SACADA, GUGA!