domingo, maio 09, 2010

A Salvação - Parte II

Marcos estava à cata dum trabalho havia cinco meses. Nos últimos dias o Sol intumescido do verão o fazia sair pra deitar-se embaixo d’alguma árvore no bosque fechado. Pulava o muro. O bosque ocupava um imenso e interminável quarteirão. Correntes enferrujadas e cadeado sem cor enlaçavam o portão torto e mole. Era assim então na cidade em que ele podia masturbar pouca coisa? Nas lojas da Grande Avenida não entrava, olhares chispando nas portas o impediam, à noite homens de sorrisos calmos e sobrancelhas grossas e retas o empurravam, nas ruas as mulheres contorciam o pescoço. Viriam a ele, todos viriam. 
A mãe secava cada vez mais, mirrava. Encovados, os olhos dormiam numa cortina preta. Elisa rezava pensando nela, na mãe e em Marcos. Em Marcos pensava mais do que gostava. O irmão era, mas não o era o que dizia ser pra ela ou era o que falava que era. Ficar os dias ali com ele ficava mais difícil. Precisava confessar, confessar ao irmão e a ela. Cada vez mais difícil e alentador. Os lábios finos de Marcos, a mão translúcida e suave, os pés pequenos e leves, as unhas cortadas, os dentes baços refletindo as cores pálidas da casa. Era bom estar ali. Mas não era, era apenas estar. 
A cada gole de água de duas em duas horas a mãe enfiava na garganta três comprimidos. Enrugava a boca numa careta e cuspia a Elisa aquela expressão de “Fazer o quê?” que ela odiava. A mãe os amava cruamente. Nova ainda quando chegou Marcos. Depois, Elisa. E, pouquinho depois, o marido ajuntou as roupas pra alguém lavar. Tinha de amar os filhos, restaram eles. Sobras de libido grandes e lascivas rastejando pela casa, destroços da libido dela, a libido flanando de janela em janela, do fogão ao quarto, da sala ao banheiro. Podia muito bem odiar as duas escancaradas concupiscências idiotas. Podia sim, ela sabia o que fazer, estava morrendo. Odiar o quê? Pra quê? Ficava os dias ensolarados escutando o trinar de esparsos pássaros nas copas. Haviam sumido quase todos, quase todos os passarinhos correram dali e ainda chamavam-na Cidade dos Pássaros. Só se tivesse nas chácaras deles. 
Elisa velava a mãe, esperava-a morrer, a mãe sabia. Perdia as horas vendo TV no quarto da mãe, na cama da mãe e imaginava quando aquela geringonça lhe desse as almofadas, a mãe sabia. A mãe sabia, mas como detestá-la? O conforto, a casa para os dois, dois jovens. Quando quem expunge a vida morre nem é tão ruim. Elisa chorara, talvez remorso. “Não precisa sentir remorso, não. É hora de descontar, minha filha.”  
 - Que eu consiga quando acontecer. Que eu entenda as coisas que me ireis mostrar. Que eu saiba ver as pessoas que merecem. Duas já me mostrastes. Colocai as outras a mim. Que eu veja Vossos olhos, que os sinta. Que Vós estejais, que Vós estejais. Eu sempre soube que fostes Vós, eu sempre soube que era de Vós. Mas aqui meu cérebro está embotado, aqui meus olhos clamam por coisas estapafúrdias. Sei que estais vindo. Ainda bem! Faz tempo que fui separado de Vós e não há dor que me corrói mais o corpo. A distância de Vós me corrói. Espero-Vos. Espero-Vos. 
Marcos rearranjou o corpo apoiando-o na perna esquerda. Continuou em oração cada vez mais baixinha, mais baixinha, até o sono chegar pela espinha. 

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