Fotos, fotos velhas com beiradas carcomidas pelas traças do baú enfiado num canto do guarda-roupa escuro mofado. Elisa procurava, procurava fotos de quando conhecera a mãe. Lembrava-se dela se rastejando com um pano na mão direita sobre o azulejo branco descascado da cozinha, o fogão vermelho desbotado e o rádio chiando “Ave-Maria, cheia de graça...” Lembrava-se da mãe, mas com a cara de agora, fina, exangue e enviesada, expressão zombeteira de idiotas que apodrecem e se orgulham disto, as marcas de dias que pouco valeram, mas falam deles com a boca cheia de saliva e olhos faiscando. Estava ali, nova, bonita. Os cabelos finos estupidificados não existiam. Cachos grandes e aromáticos, a fotografia cheirando a molhado podre ainda espirrava as margaridas à direita daquela perfeita mulher. Não era a mãe. Era a foto duma morta. Pessoas vivas têm só uma cara, a de hoje. Elisa tinha uma mãe com cara vomitada. Gostava da foto e pensava que amaria mais a mãe assim que a imagem dela fosse pensamento, daria pra virar o que quisesse. Marcos chegou devagar enquanto a irmã ficava ali, a perna esquerda cruzada, a direita dormindo em cima, respingando nas fotografias uma reminiscência amarronzada. Ele passou a mão em seus cabelos, Elisa virou empurrando o queixo pra cima.
- Que tá fazendo?
- Vendo a mamãe. Parecia uma modelo. Podia bem ter sido não fosse a pobre desgraçada que teve que se matar em tanques das casas de outros desgraçados.
- Não me lembro dela quando quebrei o braço. Só do papai. Ele disse que eu começava a ser homem.
- Quis te fazer sentir orgulho por ter quebrado o braço! Bem a dele mesmo. Sentir orgulho porque tava com o braço todo destruído e doendo!
- Não mentiu. Engraçado, sempre que me lembro dalgum momento de dor aparece o papai. Mas quando penso em coisas doces, vem a mamãe.
Fechou o baú e o jogou dentro do guarda-roupa, sentando na cama. Chamou o irmão. Elisa o abraçou respirando mais forte, o seio direito açoitando-lhe a omoplata. Marcos gostava dali.
- Você não acha que tá chegando?
- Tá, e você vai ver.
- Não tô dizendo das suas loucuras. – Encarava os traços tímidos dele através do espelho. – Falo da mamãe. Ela tá indo.
- Não antes de nós, a gente vai junto.
Trouxe-o pra baixo, colou-lhe o canto da boca no peito dela.
- A carne não te diz nada?
- Diz.
- Você imagina como deve ser lá? A gente vai continuar do mesmo jeito?
- Sim.
- E pra quem não tem braço, perna ou é feio.
- Braço e perna todos vão ter de novo. Ninguém nasceu sem. Beleza é uma categoria tão baixa quanto qualquer outra inventada.
- A gente vai continuar junto, perto um do outro?
- Vou estar perto de todo mundo.
- Não falo dos outros, falo de você e de mim. Dois irmãos. A gente vai continuar como aqui?
- Sim.
A menina estertorou um ronco fundo e passou os dedinhos finos e etereamente macios no nariz e na boca do irmão. Assoprou-lhe um beijo úmido na testa.
- Morreria de ciúmes se te visse com outras lá, me deixando sozinha.
- A morte vai acabar.
- Me mataria.
- A morte vai acabar.
- Como vai ser o Paraíso se não puder nem me matar?
- Você vai continuar como a minha melhor irmã.
O quarto era quadrado e morno. Nunca abriam a janela. O cheiro de alecrim do almoço grudava na parede dividindo a cozinha. Gostava de escutar os barulhinhos na cama do canto oposto à porta, o sono da esburacada Arapongas, um buraco no céu da cidade que respirava pó, excrementos subidos pelos concretos das fábricas.
- Mamãe tá chamando. Vou lá.
- Diz que já faço a janta pra ela. Como alguém come canja no verão!?
- Foi o que sobrou do papai.
Marcos entremostrou uns dentes beges e deu vinte passos até aparecer no limiar.
- Que foi, mamãe?
- Fecha a cortina. O dia tá muito claro e bonito. Tô ficando com raiva.
- Que besteira! Por que desperdiçar!? Vamos lá pra fora. Eu ajudo a senhora.
- Não, obrigado. A gente tem que aprender a encarar o que cabe. Este dia é seu, da sua irmã e de quem está passeando.
- Quase sempre o dia aqui não presta. Cheio de poeira. Agora que a greve acabou com o pó a senhora vai ficar presa?
- Gosto do pó. Com ele as pessoas morrem.
O menino se achegou à mãe, beijando-lhe as mãos suadas, fedidas, as mãos de mãe.
- Vou levar a senhora comigo. Não vai morrer. Vai viver. Pra sempre.
- Falta um parafuso em você. Pra dizer a verdade acho que não tem nenhum.
Ele cria em toda a baboseira e parte da culpa era dela. Quando o marido se foi, caiu na igreja e afundou Marcos no altar. Como alguém achava ser a Salvação do Mundo? Logo desse! Um Mundo desgraçado e completamente podre que até Deus o abandonara!
- Que tá fazendo?
- Vendo a mamãe. Parecia uma modelo. Podia bem ter sido não fosse a pobre desgraçada que teve que se matar em tanques das casas de outros desgraçados.
- Não me lembro dela quando quebrei o braço. Só do papai. Ele disse que eu começava a ser homem.
- Quis te fazer sentir orgulho por ter quebrado o braço! Bem a dele mesmo. Sentir orgulho porque tava com o braço todo destruído e doendo!
- Não mentiu. Engraçado, sempre que me lembro dalgum momento de dor aparece o papai. Mas quando penso em coisas doces, vem a mamãe.
Fechou o baú e o jogou dentro do guarda-roupa, sentando na cama. Chamou o irmão. Elisa o abraçou respirando mais forte, o seio direito açoitando-lhe a omoplata. Marcos gostava dali.
- Você não acha que tá chegando?
- Tá, e você vai ver.
- Não tô dizendo das suas loucuras. – Encarava os traços tímidos dele através do espelho. – Falo da mamãe. Ela tá indo.
- Não antes de nós, a gente vai junto.
Trouxe-o pra baixo, colou-lhe o canto da boca no peito dela.
- A carne não te diz nada?
- Diz.
- Você imagina como deve ser lá? A gente vai continuar do mesmo jeito?
- Sim.
- E pra quem não tem braço, perna ou é feio.
- Braço e perna todos vão ter de novo. Ninguém nasceu sem. Beleza é uma categoria tão baixa quanto qualquer outra inventada.
- A gente vai continuar junto, perto um do outro?
- Vou estar perto de todo mundo.
- Não falo dos outros, falo de você e de mim. Dois irmãos. A gente vai continuar como aqui?
- Sim.
A menina estertorou um ronco fundo e passou os dedinhos finos e etereamente macios no nariz e na boca do irmão. Assoprou-lhe um beijo úmido na testa.
- Morreria de ciúmes se te visse com outras lá, me deixando sozinha.
- A morte vai acabar.
- Me mataria.
- A morte vai acabar.
- Como vai ser o Paraíso se não puder nem me matar?
- Você vai continuar como a minha melhor irmã.
O quarto era quadrado e morno. Nunca abriam a janela. O cheiro de alecrim do almoço grudava na parede dividindo a cozinha. Gostava de escutar os barulhinhos na cama do canto oposto à porta, o sono da esburacada Arapongas, um buraco no céu da cidade que respirava pó, excrementos subidos pelos concretos das fábricas.
- Mamãe tá chamando. Vou lá.
- Diz que já faço a janta pra ela. Como alguém come canja no verão!?
- Foi o que sobrou do papai.
Marcos entremostrou uns dentes beges e deu vinte passos até aparecer no limiar.
- Que foi, mamãe?
- Fecha a cortina. O dia tá muito claro e bonito. Tô ficando com raiva.
- Que besteira! Por que desperdiçar!? Vamos lá pra fora. Eu ajudo a senhora.
- Não, obrigado. A gente tem que aprender a encarar o que cabe. Este dia é seu, da sua irmã e de quem está passeando.
- Quase sempre o dia aqui não presta. Cheio de poeira. Agora que a greve acabou com o pó a senhora vai ficar presa?
- Gosto do pó. Com ele as pessoas morrem.
O menino se achegou à mãe, beijando-lhe as mãos suadas, fedidas, as mãos de mãe.
- Vou levar a senhora comigo. Não vai morrer. Vai viver. Pra sempre.
- Falta um parafuso em você. Pra dizer a verdade acho que não tem nenhum.
Ele cria em toda a baboseira e parte da culpa era dela. Quando o marido se foi, caiu na igreja e afundou Marcos no altar. Como alguém achava ser a Salvação do Mundo? Logo desse! Um Mundo desgraçado e completamente podre que até Deus o abandonara!
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