sábado, maio 15, 2010

A Salvação- Parte IV

Os pássaros se cobriam nas folhas murchas das árvores, o céu se ajuntando e caindo pesado, a mãe esfregava a barriga. Elisa apanhou o frasco no armário. Três. Não. Melhor cinco. Pra acabar mais rápido. Esticou a mão pra porta desnivelada. Marcos tomava banho fleumaticamente. Elisa corria, Marcos dançava, a mãe morria. 
 - Sai logo daí. A mamãe tá muito mal. 
- Eu sei que antes Vós vireis. Vossa promessa é a maior de todas, Vossa voz ressoa em mim e me faz vibrar dos pés à cabeça. “E olhei, e eis que estava o Cordeiro sobre o monte Sião, e com ele cento e quarenta e quatro mil, que em suas testas tinham escrito o nome de seu Pai.” Marcastes em minha testa Vosso sinal como o Salvador dos tempos, das almas. Estou preparado. “E ali não haverá mais noite, e não necessitarão de lâmpada nem de luz do sol, porque o Senhor Deus os ilumina; e reinarão para todo o sempre.” Estou preparado.
- Seu irmão continua no banheiro? 
- Ainda tá tomando banho, mamãe. 
- Se ficar lá por muito tempo não vai me ver. 
 - Para de bobagem. 
A mãe coçou de novo a barriga vermelha e dura. Acabando-se ali, na pobreza podre duma cidade pequena em que poucos tinham sorte! A mãe não tivera. Fora esquecida por alguém. Alguém deixou a ela as coisas ruins. Seus filhos cresceram como todas as crianças crescem. Crescem e engolem o choro. Daqui algumas horinhas ia começar a vida de Elisa e Marcos, a mãe sabia. Não mais estragariam o tempo velando uma velha, uma velha com menos de 50 mas velha porque doente. Ele podia muito bem se livrar da paranoia de Novo-Cristo, ela ia achar um marido e encher a cidade com imundiciazinhas de narizes ranhosos. “Marcos e Elisa! Se vim aqui pra isto, melhor que não tivesse!”  
- Aproveita seus dias. 
- Eu aproveito. 
- Não. Fica aqui o tempo todo cuidando de mim. Os anos passam. Logo, logo, a idade vai chegar. Você tem que sair, encontrar pessoas. 
- Quem diz que quem sai e conversa aproveita o dia?
As poucas vezes que Elisa fora às noites estéreis e nevoentas de Arapongas encontrou gente que só ria e ria. E aqueles risos, pensava, se tornavam mais toscos cada vez que riam outros risos. Risos rindo risos imbecis. Junto com o irmão, em casa, Elisa ria de verdade; de verdade porque quase sempre estava deplorando alguma coisa. Ria de verdade. Risos quando Marcos não cavoucava loucuras proféticas que a perturbavam atraindo. Sentia medo do inferno, mas o irmão era seu Salvador.
- Uma pessoa pode salvar a outra? 
- Todo mundo vai se afogar. Uns antes, outros depois.
- Mas papai não salvou a senhora enquanto esteve? 
- Ele tentou foi se salvar, mas duvido. Acho que também tá se afogando. 
- Por quê? 
- Porque a gente vai junto. 
Elisa olhou os olhos afásicos daqueles ossos furando a malha enrugada da camiseta. O edredon escorregava dos pés, cochilando no chão. O frio da febre queimando os ossinhos atilados. Vazia, vazia como uma sacola rasgada.  
- A senhora o amava muito! 
- Não é questão de amor. Eu perdi, ele ganhou. Perder é ruim, sempre foi. 
- Quase sempre a gente perde. 
- Mas de quem tá do nosso lado a gente pode ganhar. 
- Estais chegando, estais chegando. Vós chegais de mansinho e acalmais minha alma que clamou ansiosamente. Estais vindo para redimir a humanidade. Pode minha cabeça ser arrancada e ainda assim verei a graça que Vós fareis hoje, reformareis o Mundo. “E Deus limpará de seus olhos toda a lágrima; e não haverá mais morte, nem pranto, nem clamor, nem dor; porque já as primeiras coisas são passadas.”
Trancado no banheiro, Marcos rezava com as mãos enlaçando a patente. Riscos tremeluzindo na água clara e fedida mesmo assim. A oração do tempo, a oração que anunciava o fim do tempo, a oração do início da atemporalidade, a atemporalidade alva e fofa que ele tinha tocado todas as noites em sonhos suaves como os cabelos de Elisa. 

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