sexta-feira, julho 09, 2010

Crianças e barbas

A casa de pintura clara e encardida fica numa rua que se espreguiça na avenida principal do bairro principal, não por ser necessário, mas por haver chegado antes da cidade. Ele senta no sofá vermelho de braços esgarçados e espuma aparecendo, se perguntando o que fez -como se fosse necessária uma explicação ou empurrão nos miolos de pessoas que como ele se sentam vazias e querem saber em que parte se perderam, ficaram sem entender. Ganidos de um cãozinho pulguento empurram a calma e a preguiça triste da segunda. O sol raspa nos tetos e deixa a sala sensabor, fria, às cinco e meia da tarde. Vai à geladeira e tira a tampa da Ypioca. Coloca o restinho num copo marrom de borda quebrada. Correria de criança esbarra no portão velho e enferruja os seus ouvidos. Ela o olha e se arremessa no colo; ele encara o portão torto parado meio que aberto meio que fechado. “Nem pra isso tenho coragem.”
- E aí, que aprendeu hoje?
- Pintá e desenhá.
- Vai lá, tira a bolsa e mostra pra mamãe o que cê fez.
Ela dá um beijo e saltita pro fundo obliqua e sorrateira, o cachorro todo dia a derruba ou morde se pisa no rabo dele. No fundo a imensidão de tijolos sem reboco mostra que aquilo pode ser uma parede, uma parede recortada em tesoura por crianças iguais a ela. Mas até pra ela aquilo não está tão bem. Só que explicar bem ou não é difícil tanto pra ela de seis anos quanto pra bisavó de 90 enfiada o dia todo no sofá de courvin trincado. Pedaços de casas e vitrôs tortos, vidros faltando, patente destampada, pisos rachados, sinteco no galão. Quando terminarem vai ser a sua casa.
“Sete anos”, ele pensa voltando o portão no batente. “Sete anos, a mãe tem razão. Depois que casei vida e esperança deu ânsia. A mãe tá certa, só que não resolve porra nenhuma a certeza dela. Nem a fé dela resolveu.”
Na varanda, eled bebe as sobras e passa o nariz pelo copo.  Ele cheirava os caminhões, conhecia o fedor de cada um quando ia com o pai à firma nas tardes de sábado. O pai fedia mais que os peixes, bem mais. Viajava a semana inteira. No sábado lhe grudava nos bolsos menos de saudade que pra ver os caminhões sendo carregados. Sumia debaixo do chassi e encontrava toco e roda estragada de carrinho de mão e feito, tinha o volante e o câmbio.
A mãe já lhe tirou a roupa da escola e está de novo no tanque. Torce. A cabeça vê com olhos sorridentes as poucas nuvens. “Ainda bem!”
Ele grita da sala
- Tô indo no bar.
- Fazer o que lá? Cê voltou não tá nem com uma hora.
- Tem hora pra tomar uma? A cachaça acabou.
- O bife também – cicia a língua gasta nos dentes.
- Vem cá nenê, dá um beijo no pai – berra.
A menina sai pulando, corta a cozinha da avó, não dela mas mora ali, o encontra no quarto pondo a carteira no bolso. “Pra quê? Bom, é o costume”.
- O que cê quer que eu trago?
- Hum, um gualaná.
- Um gualaná?! Dá um beijo gostoso.
Ele se abaixa e salivinhas dela refrescam a falta de barba.
- Deixa eu ligar praquele corno do seu tio.
- O tio boiola?
- É. O tio boiolão.
Noventa... desliga.
Pouco depois seu telefone toca.
- Fala touro!
O tio responde do outro lado alguma coisa que a menina de ouvido grudado no rosto do pai não escuta.
- Peraí – dá o celular na mão dela. – Fala com o tio boiola.
- Oi, tio boiola!
Agora ela ouve a suave admoestação. Ela ri pro pai  arqueado no colchonete ao lado da cama fuçando na cômoda atrás de meias.
- Tó, fala com xeu irmão.
- E aí gayzinho, quer perder no esnuque?
Ela nunca viu um gayzinho ou um boiola, mas o tio fica bravo, e ela vê ele; o pai chama e manda ela chamar também. É legal quando o tio fica bravo. Ele diz que vai bater nela, nunca bate, só morde a bochecha e aperta e aperta e ela gosta que o tio aperta, e sai baba da boca dele, a barba dura e ardida no rosto, e ela começa a arrumar desculpa da outra tia e da outra avó “Tô com faita de ar!” Daí o tio solta e ela corre, gira no sofá da outra avó e chama o tio de boiola de novo e daí corre pro colo do pai senão o tio judia.
- O pai vai, mas já volta com teu gualaná.
- Tá, pai.
Ela deixa as roupas marcadas no varal cheio de pontinhas de ferro e se arrasta ao portão grande todo dia trancado.
- Cê vai mesmo?
- Fui!
Entra no banheiro, se estica na patente, o pé esquerdo trava a porta. Caganeira! “Caganeira com um mundaréu de roupas desse!”
O carro está lá fora. Abre a carteira: R$ 110. É o que tem. Não espera gastar mais que isto até daqui a 20 dias. Economiza pra fazer alguma coisa que... “Meio fora de propósito ir a um bar rançoso daquele!” Mas assente e se arruma torcendo a boca triste pro livro aberto no meio dum parágrafo, um livro que tem mostrado histórias melhores que as suas. Ele tem R$ 110 e o irmão não tem nada, vai chegar em casa com bem menos notas. “Mas quando era moleque me levava a vários lugares que hoje, ainda bem, estão fechados e ele se casou, ainda bem. Não consigo pagar as escapas que sei lá se queria e tento fazer sumir algumas contas quando me liga.” Risca toda vez que ele volta da estrada e as folhas brotam no final. “Algum dia vou dizer ‘Ufa, enfim pago!'?”
Perto das seis e as paredes de oficinas e bazares sendo ficam meio amarronzadas nas lâmpadas amarelas dos superpostes que começam a ser acesas na avenida principal dum bairro que nunca foi principal de verdade. O bar fica a menos de 400 metros de casa e é sujo e fedido. O banheiro pequeno com a patente inclinada, o chuveiro esguicha metade nela. A mesa de esnuque descai pela pressão da bacia magra e ossuda do botequeiro. Há cobertas atrás dos engradados pra quando ele trava as portas depois do passeio na Barra Circular azul perto da meia noite. “Como dorme ali?!” Ele não dorme melhor. Um colchão da mãe de sua mulher que se deita num sofá-cama ao lado da cama da mãe doente e imprestável. “Como dorme ali?!”
 - Dá uma cachaça.
“Vai pendurar de novo e vai ficar difícil pra me pagar, só que tá aqui direto e quebrado, é uma boa pessoa, falta cabeça pr’esse abençoado.”
Dois caras observavam desde o umbral. Retesados. O boné amarelo de um diz que o Beto algum dia foi legal em 96. O segundo, estrábico; dedinhos finos e abertos; cotovelos dormindo no balcão. Chamam  pro esnuque.
- Espera um pouco, o corno do meu irmão tá subindo.
Os ouvidos do botequeiro cospem uma risada alta e complacente. Nas vezes em que o irmão está o que eles tomam não fica pendurado. Tem os bolsos cheios, esse abençoado. Não anota nada. O irmão nunca aparece sem ele, nunca foi sozinho. Bebe razoavelmente e acerta na hora. “Bom se viesse mais vez.”
Na caixa com celulares faltando bateria, bonecas esquartejadas, pés de sapato e estojos sem maquiagem ela procura algo que o primo goste; assim  empresta também enquanto fica com a motoquinha dele.
Ela se recosta no batente vendo filha revirar quinquilharias sujas, sabe do que anda atrás. Tem dado muito atenção a tantas coisas. Ele respira entre gestos convulsivos de desespero, rabisca planos e desejos nas folhas mastigadas de papel de pão. Ela o encara benzendo com dentes compreensivos e amáveis, retorce o cérebro pra acreditar, agora fala sério. Junto dela um homem de meia idade e inocente igual a uma criança ou algum idiota. “Ele mente e eu ajudo ele mentir, se falar a verdade se mata ou vira vagabundo assumido.”
- E aí, touro!
Aperta a mão do irmão, que está conferindo se os vidros sobem. Ele joga esnuque, gosta, mas é ridículo. Marca com giz, se amontoa em cima do braço direito, afia a mira e erra. Vale uma cerveja na nega. Uma cerveja, R$ 3,50. “Tudo bem, posso perder algumas.”
O irmão empurra o nariz pra ele, seca o copo e pede mais uma. Copo americano, não de dose. Seu braço direito solta uma cacetada. Derruba uma no corte e ajeita o bolão pra outra colada na tabela.
- Aprendeu como mata, tourinho?
- Estou tentando. Mas acho que hoje é meu dia de amar.
- Me dá a bunda então.
Riem. Os dois mais os dois contra. “Veja bem do que estou achando graça!”
As horas morrem no relógio em cima da porta do banheiro escorada na corrente. Poucos ali agora: uns bêbados sem, outros com mulheres. “Uns não vão pra casa porque ninguém os espera, outros não vão porque queriam que ninguém os esperasse?” Ele ri, engraçado pra quem está a meio caminho de tudo isto.
- Quando vai viajar?
- Não sei, não tô com vontade.
Todos os dias cedo ele acorda sem vontade e vai a um trabalho sem vontade. Fica até as cinco sem vontade. Agora o escuta latir vontade como se não houvesse nada mais importante que vontade!
- Gosto de viajar.
- Gosta porque cê não faz tua vida disso. Mas concordo, viajar não é tão ruim quanto chegar.
Abrem mais uma cerveja e manda o carinha atrás do balcão somar enquanto emija. Da patente um cheiro amoníaco sobe, a cordinha remendada com um fio de iluminação. Ele puxa segurando o mais alto que pode, lava as mãos naquela torneira! E o irmão disse faz tempo que o botequeiro dorme no bar, toma banho na água do chuveiro que espirra metade na pia e um bom tanto na patente.
- Quanto deu?
- Dezoito e vinte, abençoado.
“Mesmo a três quadras e meia de casa vai querer que o leve.”
- To indo, só vou pegar o guaraná da nenê e uma Ypioca.
“Não tem dinheiro e bebe, compra guaraná. Não tem dinheiro, mas dinheiro não o impede, apesar de usar a esperança de que vai ter um dia pra fazer os outros acreditarem que vai pagar.”
Ele desliga o carro.
- Vocês vão em casa amanhã?
- Não sei. A mãe veio aqui e falou um monte de merda. Disse que só bebo e não entendo que tenho um caminhão com prestação atrasada, porque o dinheiro do pai acabou, e uma filha pra criar. Ela acha que eu quero estar  nessa bosta!
“Quase nada tem feito pra sair.” Ele trabalha como assessor de comunicação numa entidade de classe importante, que ficou mais importante depois que começou a trabalhar lá, “quatro anos, três meses e 21 dias atrás, grande feito!”
- Está certa. O pai está louco, cheio de contas e não há de onde tirar.
- E eu? Eu também tô louco. Tô sofrendo!
- Sente prazer nisto. Fica pisando a sua desgraça.
- Eu raspei a barba porque nem homem sou mais.
- Os seus inimigos o acalmam.
Rosto emburrado, ele apoia a mão no teto do carro. Seus olhos pisam a esquina verde -as cores mentem- em que desce um filho da puta. Amigos quando eram pequenos e ele morava na casa de tábuas na rua de terra e carregava o outro irmão nas costas pra escola, pra casa, pros pomares dos outros. Desgraçado dono de três caminhões, “um Fuscão, um Cargo e um 1622, tudo 2000 e tralalá.” Pra ele, um 2013 ano 75 que não paga.
Descola do bolso de trás a carteira, uma nota de R$ 50 e duas de R$ 20. Pega uma.
- Tome.
Antes de sair de casa a mãe avisou que o irmão estava duro, sem grana nem pra mistura. Ele faz a sua parte, salva uns cinco maços de Hollywood.
- Brigado. Parei de fumar. Tchau, boi.
Agiu como cabia, tentou ajudar e ele não quis. Sem culpa de nada. Só que a pena cresce e cresce nas mordidas secas e compassadas do maxilar. Carrega uma angustia capaz de escrever um romance de 500 páginas. A semana inteira vai pensar nisso remexendo os cabelos e os fiapos de barba. Já se observa caído em livros, atrás de histórias com mais histórias que aquela. Ou aquela é a história que sempre quis e poucas vezes deu de cara. “Vou tocá-la e vou sofrer de sensibilidade; preciso dessa tristeza para me encontrar.” Sente a solidão deitada igual se deita uma criança medrosa se borrando toda. Tristeza inocente, bela e maldosa. Como toda criança.

8 comentários:

Serbão disse...

belo conto. tem um livro amadurecendo aí.

**** disse...

Obrigado, garoto. Sua visita sempre é um prazer.

Mauro Castro disse...

Bah, tô pensando em raspar a barba.
Há braços!!

**** disse...

Ahahahahaha... a minha eu tô mantendo aparada já faz um tempão.

Cecília França disse...

Muito bom, meu irmão. Vou esperar o livro de 500 páginas. Beijos.

**** disse...

Por módicos R$ 3.500.
Ahahaha
Beijos, irmã!

Cássio Gonçalves disse...

Tá com cara de capítulo isso, hein...
Muito legal!

**** disse...

Né, não. É cara de acabar a vontade de escrever no meio do caminho mesmo. ahaha
Abraços!