sábado, agosto 28, 2010

Notas menores sobre amor - I

Quem vê Marcos pela janela de cabeça abaixada escarafunchando o chão nas solas tristes sente pena dele. Vai alguns fins de semana ao salão de barbeiro em que trabalhava até três anos atrás, os três anos que o fazem estacar no umbral encarando fixamente Henrique nas pálpebras murchas, os fregueses o percebem pelo reflexo no espelho da cadeira desocupada. Marido de Luciana, a mulher de sorriso acolchoado. A seis quarteirões da Avenida Arapongas vivem numa pequena casa dum bairro antigo. Espera Henrique chamá-lo na porta e o dono lhe pergunta todas as vezes arrematando exclamações curiosas, delicadas e honestas de quem se sente incomodado, como vão as coisas pros rumos debaixo. Marcos sempre entra e se senta no sofá preto ao lado do bebedouro e de uma cadeira para lavagem de cabelo há muito desligada, desde quando trabalhava ali todo dia e nunca entendeu nem perguntou a Henrique por que a cadeira.
- A gente vai tocando, a Luciana aumentou as encomendas, trabalha até tarde. Aumentou as encomendas e ganha menos ainda.
Vai ali e na igreja. Raras as vezes em que alguém o vê pelo supermercado ou na padaria. Mesmo nelas sua parada é rápida e direta; entra chega aonde precisa e sai sem quase falar, nem nas filas nem no caixa. Na igreja ele aparece atrás de padre Nilson. Ficam horas sentados um de frente pro outro, fumando cigarros curvos e amassados e tomando vinho. Começou a visitá-lo faz três anos, quando souberam, e segue o ritual toda semana, na terça e na quinta. Não que o padre realmente lhe diz coisas importantes que amainam a cabeça, mas porque quase ninguém entra nesses dias, o padre não recebe fiéis e dispensa as faxineiras e outras ajudantes da faina. Ele se incomoda com Marcos. Entre as raras perguntas e respostas que um faz e dá ao outro, mexe no colarinho e fica repuxando as calças nas coxas, sentindo-se amarrado. Espera algum descuido para arrumar desculpas e enxotá-lo. Mas as desculpas nunca chegam, o fatalismo da vida sacerdotal!
Está quase chegando à barbearia. São três e meia duma tarde abafada de janeiro, a chuva caiu tangentemente de manhã e ressuscitou o calor emburrado debaixo das lajotas. Faz tempo que o asfalto parou de soltar fumacinhas e ele observa o obelisco de R$ 500 mil, diz a placa, da praça em frente ao cinema e pensa como aquele dinheiro foi gasto da forma certa, mendigos e bêbados e travestis se esticam como cachorros se espreguiçando nas nesgas de sombra das arcadas. Precisa duma grana, a mulher não conseguiu pagar todas as contas, principalmente a que enfiou nela os dentes novos, está com os dentes bonitos e ri só pra ele agora. Tem de quitar a calma que a mulher nele expunge. Faltam R$ 100. Uns doze cabelos, só que 24. Apesar de Henrique quase nunca querer, reparte meio a meio. Dia morno, vai desencravando os dedos até as seis, quando se recostam as camisas amarelas, verdes e azuis engastadas de pó úmido das serras. Dois dias de trabalho é o bastante.
Os mais velhos não cortam com ele. Dizem preferir Henrique. Mas três anos atrás o largavam sofismando brincadeiras no sofá e esperavam languidamente Marcos acabar um, mais um, outro e mais outro. Seus clientes são a rapaziada mais nova da produção e os guardinhas. Sabem sobre Marcos, mas querem cortar, e rápido; depois, claro, vêm as risadas sardônicas comentando sobre o barbeiro, assim que desligam as motonetas no boteco, de cabelos aparados. A cara dele é engraçada, fica vendo os sapatos e revolvendo as chusmas do chão, sua tesoura escorrega e ele nem nota.
Esgrouviado, Marcos tem os olhos grandes secos e fundos presos em manchas azuladas. Antes da barbearia pra ele, outra barbearia e amigos de até três anos atrás. Descansando na falta de clientes os colegas giram nas cadeiras e o encaram da porta, sobrecenhos duros e comiserativos, as escolhas que fez fazem-no ter dó e raiva, as escolhas que fez e não atingiram ninguém fora ele e Luciana. É uma cidade pequena, não diferente de muitas outras. Cidade em que há calmos dias de calor e preguiça na Ave-Maria das seis, na roda de dominó na Praça da Prefeitura, mulheres caminham com bocas anêmicas e homens manquejam lentamente em camisas soltas e óculos vazios.
João olha o relógio, daqui a três horas vai lavar a cidade, queimar todas as chagas na sua pia de batismo. Irrequieto, mexe com os ponteiros fugidios debaixo do vidro. Faltam três horas e nada de novo pra contar. Metade de Arapongas o espera.
- Vocês são umas toupeiras! Nem conseguem fazer um programa. Tenho que chegar lá e dar um jeito.
Ele se levanta resfolegando e arruma a calça dentro camisa. O sol torra as janelas fumês do prédio. Embaixo, pequenininhas, as pessoas se arrastam, aqui em cima, ele ofega tomando uma xícara de café.
- Vou pra casa trocar de camisa.
Marcos estacou entre as duas barbearias. Vê alguns moleques duns onze anos voltando do colégio. Eles se socam e trocam frases espertas com umas meninas poucos passos à frente, elas não param, mas olham pra trás dando risinhos moles. Três anos a menos só, mas ele não pensa nisto. Quatorze anos, o problema não está aí, mas nos três que empacaram como ele, entre uma barbearia e outra, entre um momento estático e indefinido na vida dele e outro. Os 14 anos foram bem mais fáceis do que os três, estes três não foram nem um até agora, são como alguém estalando os dedos na esquina o esperando sair de casa pra topá-lo de frente, ficam entre uma barbearia e outra e do lado do cara de calças jeans e camisa xadrez, de óculos escuros e cabelos loiros, cortando a praça, acenando as mãos adiposas, as suas também foram, balouçando a cabeça dum jeito amável.
João desce calmo entre as pedras soltas da praça que tem o nome do primeiro prefeito da cidade. Ninguém sabe onde jogaram as espingardas da eleição nem quem se feriu com elas nesta pacata cidade. Eles não contam. As doces mães estivais trouxeram os filhos de ônibus pra brincar no parquinho, viram os lábios pra dizer “boa tarde!” a ele, que sorri, os pés macetam firmes as pedrinhas soltas. Em dentes amarelos e desencaixados o cumprimento amável delas se estende. Um banho e uma camisa sem cheirar suor. É o que quer agora.
“Esse se fodeu, coitado!” – ri um riso agudo e fino, preso entre a língua e o céu da boca. Há uma sombra colada na parede que separa as duas barbearias. Entra no carro.
Luciana trabalhava numa loja de roupas na Avenida Principal. Toda loja importante fica ali, numa extensão de 500 metros. Tinha 18 anos. De bunda dura e redonda, lisos cabelos negros debruavam-lhe o rosto fino, os olhos escuros e brilhantes encarcerando as flexões suaves e lentas da boca. A mãe era faxineira na casa do dono da fábrica de móveis em que o pai estava empregado havia quase 30 anos. Marcos a viu chegar à porta, a tesoura na cabeça do pai, ela lhe pediu as chaves. O céu estava claro e ele entendeu a eternidade, toda aquela gente morta e Deus apontando a ele a salvação, a colocando bem perto do seu rosto, deixando-o beber; a salvação fresca em aquarela nadando naqueles cabelos longos. Deus não matara sem compaixão ou remorso seu filho, o único, à toa.
Luciana estudou num colégio do centro. Tinha de pegar o ônibus em frente à escola do bairro, eram dez quilômetros. Foi pra lá quando tinha 12, na sexta série. Alta demais e magra demais, olheiras fundas e preguiçosas. A turma a chamava Vara de Cutucar Morcego. Sentava-se perto e passava os recreios com dois colegas, Sharmila, a Boca de Lata, e Douglas, o Zaroio. Ela sempre acreditou que eles tivessem algum problema sério, alguma deficiência mental, mas menos que o resto. Ficavam quietos quase todo o tempo. Com monossílabos sibilantes, se perdendo em algo distante e indefinido, diziam frases entrecortadas e incompletas um ao outro, só que nesse dia Douglas tinha treinado.
- Lu, q.. quer... na... morar co... migo, gos...gos... sto mui... muito... de você... A gente po... pode... andar de mão da... da... dada e vo... cê... po... pode ir... na min... nha ca... ca... ca... sa...Fa... faço sua ta... ta... ta... refa quan... do vo... você não tiver von... tade.
Douglas tinha trabalhado duro em casa, tinha ensaiado e ensaiado, mesmo assim acabou gaguejando. Luciana observou aquele moleque canhestro, olho direito desnivelado, se inchando em espinhas, cabelos emplastrados na testa curta e pipocada, óculos grossos amarrados numa cordinha escura. Repuxando a perna direita, ergueu a bunda e soltou um peido. Ele trazia na bolsa um colarzinho, um colar de contas feito pela mãe e fendido na imagem da Virgem Maria, o embrulho caseiro havia rasgado aqui e ali de apertar à noite, imaginando o que diria a ela, a ela que como ele era jogada de lado pelos outros, pouca gente gostava dela, mesmo tanto que dele, pouca gente gostando dos dois, pouca gente pra dois gostarem, ela gostaria dele. Mas ela se levantou carregando o cheiro acre das roupas e a bolsa de escola esgarçada. Não disse nada. Se levantou e foi.
A sala estava aberta. Luciana se sentou remexendo dentro da bolsa atrás dum livro, Xisto no Espaço. Apertava a cabeça, não conseguia se concentrar e apertava mais. O idiota tinha acreditado que ela gostava dele só porque falava com ele. Falaria com qualquer um e nem por isto tinha de gostar de alguém. Teria amizades com qualquer um sem nem se preocupar se um dia sumisse.
- Não foi legal o que vocês com o Douglas, Lu. Ele tá lá embaixo chorando – disse Sharmila, apoiando as mãos espalmadas no tampo da carteira.
De olhos manhosos e tumefeitos embaixo duma seringueira, Douglas arrebentava em puxões secos e compassados as contas do colar. Ouvia as outras crianças gritarem, as sentia perto dando risadas do maricas que chorava na sombra duma árvore como se alguém houvesse roubado o seu lanche. Ao lado da raiz ajuntou as pelotinhas e com as mãos macias pendidas dos bracinhos glabros começou a cavoucar. Cavoucou e cavoucou até sentir dor. Ergueu as mãos, ficou vendo as manchas ensopadas e vermelhas debaixo das unhas. Ardiam. Mas não chorava mais. Empurrou as bolinhas pro buraco e jogou terra.
- A culpa é dele – respondeu acompanhando as letras na página aberta.
- Dele nada. É sua. Ele só fez uma pergunta, você não precisava ser grossa como foi, sua...
- Sua o quê? Hem? – pulou da carteira e encostou o livro na cara de Sharmila. – Diz, vai, diz que eu enfio o livro no aparelho. Nem o dentista vai tirar.
Havia amigos escrotos se unindo pelo deslocamento e a solidão, isto irritava Luciana. Dois meses ainda de aula, mas ela não conversou mais. Continuava na mesma carteira, esparramando o caderno e os livros, o estojo em cima. Durante os recreios ia ao fundo do colégio, arrancava os matinhos em volta das rosas. Estava puxando umas folhinhas verdes e moles quando dona Clotilde, a mulher do guardinha, apareceu.
- Oi menina. O que tá fazendo aí?
- Nada. Tô no recreio.
- Eu sei que tá no recreio, ouvi o sinal. Mas porque tá sozinha enquanto as crianças tão correndo no pátio, brincando de um monte de coisas?
- Não gosto de crianças. São chatas e interesseiras!
- Você tá fazendo errado – disse a velha de olhos amassados nas papadas e cheirando à gordura. Desceu os degraus ao jardim. “Como gordo é feio!”, pensou Luciana sem notar. - Você tem que tirar tudo, desde a raiz, não pode deixar nada senão o mato cresce de novo. “Como gordo é esquisito!”
A menina tentou puxar um. Tinha que colocar mais força, o barulho era mais legal e a terra estourava. Até o fim das aulas voltou ali em todos os intervalos. Dona Clotilde era gorda e feia, mas poucas vezes olhava pra ela ou estendia a conversa além de “oi” e “tchau”.
João deixava o filho na escola todas as manhãs. Anderson era magro, tinha os cabelos loiros e cacheados em volta do rosto oblongo, sua mandíbula saltava, dedos dos pés esparramados, as pernas tortas abertas nos joelhos. Ficava cutucando o nariz, fazia bolinhas observando os colegas soltos nas corridas pelo pátio. Um ano mais novo que Luciana. Ela também não brincava. Tinha começado a sumir nos recreios e Anderson a procurava entre as outras crianças, ficava feliz de ela não estar lá, os dois colegas que havia tido parados nas escadas como antes, mas mais pertos agora, Douglas segurando discretamente a mão sem jeito de Sharmila. Não estava com eles e Anderson ficava contente, mas se encasquetava com aquilo.
Marcos tinha os dedos quietos e dormentes, pouco se dava entre os cachos que caíam nos seus pés ou que enroscavam na cadeira. Ele via a instrutora passando os pentes nuns cabelos desgrenhados, alguém que não tinha um puto e cortava de graça, e pensava como era nojento tocar aquela cabeça. Seu pai pagava a mensalidade na escola de espelhos manchados, presos em balcões de lâminas de compensado marrom. Dezoito anos, faltavam menos de 15 dias pra terminar o curso; ele sabia que ainda ia destruir alguns até conseguir cortar de forma decente.
João está deitado com a cabeça encoberta, nu, enquanto o banho se evapora. Faz muito calor e ele se seca assim no verão. Pensa em Marcos e como aquele coitado se fodeu, dá dó, mas pode fazer pouco por ele, se fodeu e se fode e gosta. Há um programa e quase nada pra falar. “Um bando de idiotas!” Os funcionários se vestem em confortáveis camisas de algodão, andam em espaçosos carros, câmeras novas, e trazem a ele as mesmas surradas notícias sem importância alguma. Alonga o braço à cabeceira e agarra o copo de uísque aguado pelo gelo. Tira a toalha da cabeça e dá uma tragada seca e direta estalando os beiços finos sempre rachados. João tem pouco tempo, algumas horas só, falta assunto.

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