segunda-feira, agosto 30, 2010

Notas menores sobre amor - II

Anderson bolara um plano pra descobrir onde Luciana se enfiava a cada recreio. Sairia faltando uns dez minutos pro intervalo. Ninguém pulava fora antes do sinal, menos ele. A TV ainda não havia chegado; o pai apresentava um programa de rádio e fazia alguns bicos que o filho e o resto da cidade não faziam a menor ideia; e já era bem conhecido.
- Quero ir no banheiro! – disse com a mão direita levantada.
- Falta pouquinho pro sinal. Não dá pra esperar?
- Não – respondeu o menino empurrando a cadeira e claudicando à porta.
A torneira espirrava água quente e ele deixava escorrer nas mãos, imaginando aonde Luciana ia. Alta, magra, rosto pálido, morto, o sangue dela devia ser sem cor. O sinal tocou quando Anderson estava de volta ao corredor, encostado atrás duma coluna, espiando a porta em frente. Ela apareceu no umbral com o cabelo preto que ele odiava, os olhos sombreados irritadiços e irritantes. Começou a descer pra atrás da quadra descoberta. “Hum, pra casa do tiozinho!”
Dona Clotilde a esperava escorando a porta da sala, enxugava as mãos num guardanapo meio sujo de cascas de batata.
- Oi, Lu!
- Oi!
Nem a mãe a chamava de Lu; só aqueles estranhos que se acharam seus amigos por algum tempo. E Dona Clotilde, outra esquisita, pensava que podia. Pisou algumas florezinhas rosas penduradas em galhos finos e moles. “Pra parar de me chamar de Lu, sua velha gorda!”
 - É aqui que vem ficar longe de todo mundo, Vara de Cutucar Morcego?
- Vai pro inferno, molequinho remelento! Volta lá com eles, vai jogar bola se seu pé de pato deixar.
Anderson chegou perto de Luciana, que continuava mexendo nas roseiras, e, desajeitado, raspou os joelhos nas costas dela, que parecia não percebê-lo ali.
- Hem, Vara de Cutucar Morcego? Você fica todo dia aqui se lambuzando, sua porca?
Loguinho o calor ia escapar da terra, assim que as nuvens desabassem. A voz do menino a irritava, vinha pesada como a chuva, enchia suas orelhas de lama. Ela começou a cantar uma canção melódica lentamente, reforçando a desafinação na voz aguda nasalada.
- Serra, serra, serrador...
- Cala a boca!
- Cinco, seis! Serra, serra...
- Cala a boca!
 - Quantas tábuas já serrou?...
Ele a empurrou, apertando as costas, dando estocadas nos pulmões, Luciana se desequilibrou e caiu enfiando os joelhos na grama.
- Uma, duas, três...
Ainda cantava e Anderson queria matá-la ali, joelhos enterrados na grama verde e macia e cantando aquela música de criança. Odiava a música, um ódio amarelo e viçoso e atonal. Dona Clotilde escutou alguém gritar “Cala a boca!” e ligou o fogo, tampando a panela com batatas. Vinha de trás da casa, de onde Luciana arrancava os matinhos que enfeavam o jardim; ela atravessou a sala estéril com móveis pretos e duros, estante escura sem puxadores. Anderson socava as costas da menina que gemia uma canção que Dona Clotilde cantara pros netos e filhos que a vinham ver nos almoços encarnados de domingo.
- Para, menino! – disse, puxando Anderson pela gola da camisa.
- Ela me deixa louco com essa música! – correu atravessando as quadras, os garotos seguraram a bola virando o pescoço com a boca esgarçada enquanto o filho de João passava.
Luciana ainda estava cantando. Dona Clotilde quis levantá-la.
- Sai daqui!
Ficou furando perto das rosas, retirando os matinhos e cantando.
Marcos apanharia se não arrumasse emprego assim que recebesse o diploma, tanto ele como o pai dipsomaníaco tinham isto como certo.
- Oi!
- Oi, quer cortar o cabelo? – perguntou Henrique espadanando a cadeira com uma almofada preta de courvin costurada pela mulher.
- Não. Não é isto. Eu... fiz um curso de cabeleireiro e queria saber se o senhor... me deixa praticar.
- Você sabe cortar?
- Sei, mas acho que ainda não sou bom.
Henrique se sentou.
- Pega a capa e a tesoura. Vamos ver.
Os cabelos de Henrique eram lisos, já estavam baixos, mas ele pedia pra cortá-los mais. O fio inteiro colado na cabeça e Marcos ainda tinha de cortar mais rente! Os dedos escorregaram na tesoura exclamativos, ameaçavam começar prum lado, pro outro, o barbeiro tamborilando nos braços da cadeira.
- Vai lá! Daqui a pouco começam a chegar os clientes e você ainda não fez nada.
- Tenho medo de estragar a sua cabeça. Não vou furar ela... mas tenho medo de estragar...
- Tá bom, tá bom. Vou te dizer o que deve ser feito.
Ele pegou o jeito bem rápido. Henrique gostou do garoto; com dois, ninguém mais ia reclamar de demora. Marcos ganhava trinta por cento do que pagavam quando cortavam com ele. Dois dias antes de receber o diploma já trabalhava das nove às seis.
Ainda está entre os salões, os pés recalcitrantes. Ele precisa de R$ 100, Luciana tem dentes novos só pra ele. Três anos estertoram, estertoram e nunca morrem. Ele afunda a cabeça quando nota alguém se aproximando, se atrofia como três anos atrás.
Luciana voltava ao jardim sem bom dia a Dona Clotilde. Ia ao jardim e não mais fazia buracos com os estouros de raízes. Na despensa da mãe tinha encontrado um saquinho de sementes de girassol; as esparramava nos pés das rosas. Os girassóis eram grandes e muito amarelos, o viço deles mataria o resto, iam chegar as férias quando tudo começasse, as rosas morreriam sob os óculos baços e gordurosos de Dona Clotilde. Anderson ainda se fixava nela sumindo atrás das quadras, a vozinha nasalada cantando “Serra, serra...”, ele macetava as orelhas, deixava vermelhas e Luciana ainda cantava lá dentro, um zunido de ouvido sujo, um zunido de ouvido sujo e cheio de criança e de um avô que o juntava pelos braços e fazia ficar ali ouvindo “Serra, serra...”, dando beijos de alcatrão, o fumo molhado mofando as bochechas. As aulas estavam no fim e Luciana ainda cantava aquela canção lá no fundo da cabeça de Anderson, a espremia.
As chaves brilharam nas mãos dela. Ao lado da moto, Luciana amarfanhou sem pressa os cabelos embaixo da blusa, Marcos a via pelo espelho enquanto trocava palavras desconexas e curtas com o pai dela. Ele a amou ali, no meio duma tarde irritante que não o irritava, amou seus cabelos longos e brilhantes irisados dum sol caindo atrás do prédio de onde dá pra observá-lo enquanto vacila entre os dois salões e corre as mãos na parede lixando a textura ácida.
Ela guardava quase toda a grana que ganhava pensando em começar uma faculdade, direito ou marketing. A loja tinha vitrines pequenas, móveis na cor tabaco angulosos e cadeiras com detalhes prateados, uma discrição que se extravagava nas pisadas dos clientes apressados às duas tarde ou às dez da manhã. Luciana observou Rogério, meio zonzo entre algumas calças. Filho de moveleiro, cursava direito à noite e de dia descansava.
- Oi, bom dia!
Os olhos escuros e frios dela o surpreenderam adoravelmente, os lábios arqueavam um sorriso lascivo e temerário nos dentes brancos.
- Oi - respondeu. Estou procurando um presente.
Ela parou em frente de uma casa. Desceu da moto olhando. Dos dois lados da rua as casas eram enormes. Pro lado de lá das grades brotavam jardins multicoloridos, mas fleumáticos, bem mais tristes que os girassóis lustrosos que ela tinha plantado um dia na casa de Dona Clotilde. Elas tinham grades altas e cercas elétricas, as cumeeiras espiavam de cima a imensidão da rua. Tocou a campainha. Dois cachorros sarnentos, também pra fora, empurravam a poeira do sol bêbado na tarde magra. Uma mulher de rosto seco e riscado atrás do vidro puxou a cortina, fez um sinal e sumiu. Senhores de ternos escuros passavam em automóveis de vidros fechados e Luciana percebia que a notavam na frente do portão, percebiam como a calça definia sua bunda em abóbodas macias. Rogério apareceu sem camisa e descalço. Ela o acordara.
- E aí, Lu? Saiu mais cedo do trabalho?
- Disse que ia levar umas roupas pra umas mulheres.
- Onde tão?
- Pra onde eu falei que ia levar.
Marcos a amava. Ele a amava dum jeito suave e confortante, o amor que se vê nos outros e poucas vezes perto de casa. Mantinha os dedos numa tesoura dura e calejante, na sala azul cheia de luzes com teias de aranha no teto, e a amava. Luciana chegou, pediu a chave, subiu na moto indo embora. Luciana chegou e olhou pra ele, não disse nada, olhou pra ele e deve ter rido da barriga que escapava da camisa de botões esgarçados, as mãos gordas e suadas, o queixo enterrado. Marcos amava. Tinha de emagrecer.
- Lu, a gente precisa parar com isto. Marquei meu casamento com a Evelise.
Ela respirou devagar sem mudar a cor opaca em seu rosto.
- Bom Rogério, acho que você disse o que tinha que dizer. Eu também já fiz o que tinha que fazer. Vou embora.
Agarrou as calças, o sutiã e a blusa e foi pro banheiro descalça. Era branco e metálico. As torneiras douradas, as toalhas, macias, descansavam sem marcas de dobras. Pegou uma e limpou o nariz.
- Tchau!
Precisava emagrecer, só que não sabia direito como acontecia. Luciana era tão diferente daquele velho com cheiro ensebado de cola, de rosto queimado e rachando! Filha pobre só quer casar com o pai quando é pequena.
 - É ajeitada a filha dele, hem? – Henrique coçou a barriga olhando Juraci atravessar a praça.
- Pra onde vai?
- Pra casa, acho. Mora na parte de baixo da linha do trem.
- E a moto?
- Sei lá da moto!
- Ela trabalha aqui perto? – perguntou trocando a lâmina da navalha.
- Numa loja de roupa pra quem tem bufunfa.

Felipe tinha uma fábrica de berços e guarda-roupas que capengava, mas o pai tinha algumas outras e socorria quando o caçula dava cabeçadas. Encontrara Luciana parada modulando um sorriso úmido e vago encostada a umas araras. O sábado com vento quente suava na janela e ele colocou a bermuda e o tênis.
- Oi!
- Oi, Lu! Onde você tá? – disse segurando o telefone com uma mão enquanto usava a outra pra arrumar a franja.
- Tô em casa de saco cheio.
- Hum, hoje tá fechado o comércio, né?
- À tarde sempre foi.
- Acho que vou pro Catuaí. Tá a fim?
- Vamos, tô me estrangulando aqui já.
Marcos cortava o cabelo dum velhinho ranzinza e fedido. Ele usava um blusão amarelo enodoado de suor e ficava remexendo o pé que tinha uma ferida esverdeada supurando. Mas Marcos não via os dedos escuros de unhas grossas que borbulhavam. A moça da YIUMXX com a boca vermelha e o rosto cheio de sangue branco e bonito.
- Tô começando um regime – disse a Henrique sem olhá-lo.
- Qual?
- Sem comida.
- Todos os regimes são de praticamente não comer. Ou melhor, comer menos.
- O meu é sem comida.
- Tá! E vai ficar em pé de que jeito? – rosnou numa voz desinteressada e enfadonha.
- Tenho bastante gordura aqui – bateu na barriga.
Fazia quase uma hora que Luciana esperava na esquina. Felipe chegou deitando sobre o banco do lado e abriu a porta.
- Desculpa a demora, mas tava resolvendo uns negócios com meu pai.
Trancada naquele quadro de teto branco e paredes lisas, Luciana cruzava pessoas que sorriam jogando a cabeça nas vitrines de meia-luz amarela e manequins claros em suaves roupas de cores sóbrias. Lá fora ela vira mulheres gigantes, que tinham sido congeladas num salto infantil e retardado, coladas nos tijolos vermelhos. Poucas vezes saía com caras como Felipe pro Catuaí, nem esperava que a chamassem. Juliana, a namorada, tinha outras coisas pra fazer num sábado à tarde, como depilar perto das coxas e esperá-lo. Dava passos secos e desengonçados, meio longe dele, ciciando frases curtas e destoadas. Queria estar com Douglas e Sharmila. Sentados nalgum canto escuro pelo recorte do sol gorduroso conversando coisas calmas e gentis. Não havia sido gentil nem calma com eles e a falta dum beijo e dumas voltas na escola de mãos dadas emudeceu a tranquilidade dela. Lojas ajeitadas com roupas que ela tão bem conhecia, as moças apoiadas nos balcões descansando uma perna, nos sorrisos maquilados, nos perfumes falsificados, doze horas de pé, eram perfeitas. Nem passava pela cabeça dos donos dali naquela época erguer umas galeriazinhas na região delas e dos seus colegas que se esbarravam nos ônibus lotados pra andar nas alas brilhantes como o céu quando se é novo o bastante pra acreditar que ele brilhe sempre que se sopram as nuvens. As moças descansando uma perna macetada, com o reboco do sorriso bambo, não olhavam pros vizinhos e Luciana percebia. Ela também não olhava, menos em Arapongas que em Londrina. Moravam lado a lado, trocavam bons dias tímidos nas ruas de muros e portões frouxos mas se descartavam. Ela os via perdidos na Grande Avenida; quando passavam em frente à loja cochichavam ou seguiam em frente com os pescoços retos. Felipe soltava os braços em movimentos longos oblíquos falando alto, mostrando pra quem cruzava com eles que não tinha nada de secreto ou suspeito na sua voz.
- Vamos assistir a algum filme?
- Não tô com vontade, tô cansada.
- Cansada de quê?
- Cansada! Só cansada!
- Você quer ir?
Se havia sido praquilo que duas pessoas que se conheciam bem pouco e que andavam afastadas uma da outra tinham saído de Arapongas e matavam as horas escorrendo nos corredores refletidos nas fachadas das lojas, Luciana só apressou o que caminhava com preguiça e pernas lânguidas.
João vai começar o programa, falta pouquinho, Anderson está chegando às 10 da noite no aeroporto de Londrina, vindo do Rio, de onde chegou da Europa. Está pronto pro filho que traz o filho de dois meses e a mulher que não fala português. Pronto com displicência. Não tem como evitá-lo e não o quer. Mas o espera e espera o programa começar. Pouca coisa pra dizer. Talvez do orgulho de ter um filho que volta trazendo uns diplomas embaixo do braço e tostões voados em festas, filho e mulher.

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