domingo, janeiro 23, 2011

Conversas de casal

Eu acendi o cigarro e dei uma tragada pesarosa e reflexiva olhando pra fora, meio de lado na cadeira encostada à janela, e ela falava. “Que capacidade dissimulada de mostrar que me importo!” Dizia algo sobre sua dor, o brinquedinho gostoso com que brincava em noites quentes como aquela, e eu ali escutando obviedades que me contorciam, o cigarro rolando entre o indicador e o polegar, depois entre o médio e o indicador, e ela continuava a falar. Quando fizesse uma pausa e jogasse pesadamente a fronte sobre as mãos espalmadas, cotovelos na mesa, era minha hora de pigarrear, olhá-la apertando os olhos até ficar úmidos e dizer frases sinceramente falsas e me levantar a chamando pra dormir. Eu só queria dar o fora dali, o quanto antes possível, mas seus antebraços continuavam deitados na mesa, cansados, resignados, desafiando a escutar a voz aguda e monótona.
Estava realmente triste e cuspia a sua tristeza em mim, me tentando fazer triste também, obrigado a suportar a sua tristeza, torná-la minha.
Acompanhava agora o meu olhar pela janela. Quem sabe tivesse percebido a insustentável desfaçatez da cara dissimulada e frígida!? Fiquei confuso, uma gota fina de remorso escorreu pro intestino.
Há respostas e ações esperadas, mesmo quando se quer dizer foda-se bem pausadamente, a voz tonitruante, a fim de não deixar dúvidas. Foda-se soa realmente mal educado porque sincero. Ela me olhava e eu olhava pra fora, com medo de virar e encarar os olhos turvos semicerrados mas profundos e doentes, doentes da brincadeira de suportar a dor dum jeito demais pesado, maior que ela mesma. E eu olhando um amontoado de lixo inútil, tão inútil! Mesmo assim guardado. A cinza do cigarro se quebrou estatelando no assento e ela ainda se fixava nas curvas estéreis acima das bochechas cimentadas numa cadeira curva de metal descascado. Do outro lado da janela um gato corria atrás dum bicho se escondendo entre as telhas, o camundongo cercado. O ratinho querendo se esconder e o gato colado na sua bunda. Ela se colava a mim, seus olhos, suas mãos, seus cabelos.
- Ela me fez realmente sentir raiva, uma raiva profunda e ardente!
Ódio é bem mais gostoso que o amor porque alimenta o desprezo pra fora, não o autodesprezo. As pessoas esperam coisas amigáveis mesmo quando têm sentimentos desprezíveis. Para mim dava na mesma estar com raiva ou completamente encantada com a mãe. Nenhuma das duas opções deixaria a noite menos abafada ou ao menos acabaria com os mosquitos. Eu queria coisas simples. Ir pra cama e dormir. Ela buscava palavras agradáveis misturadas a amor, o amor que estava sentindo falta. Queria que eu me desprezasse por ela enquanto desprezava a mãe. Dois contra um e o jogo estava ganho.
Ela se sustinha em dedos frios e lívidos e olhos displicentes. Os cabelos colavam-se ao rosto nas lágrimas tépidas marejadas de rancor. Eu a amava. De dentro pra fora pra dentro. Saindo de mim batendo nela e voltando puro. Não existia dor. Talvez por isto ficasse tão incomodado com a agonia que encenava na minha frente. Quando a conheci não foi pra odiar no lugar dela nem pra amar no lugar dela. Foi simplesmente para que pudesse ser e ter a mim divinizado em alguém. Esta pessoa que implorava agora pra que eu fizesse parte de seus desejos e rancores. “É demais!” O gato bebia água estertorando. Perdera. O ratinho respirava lá fora, nalgum canto daquela infinidade de coisas estragadas esperando ser usadas num dia que fica cada vez mais longe. Mas aqui dentro não restavam chances.
Ela começou a dizer como o pai a amara e como havia devotado a vida a ele, enquanto a mãe se jogava no meio dos dois, os impedindo de chegar a algo mais próximo que uma relação de pai e filha, lengalengas requentadas e que já tinham me cansado em outros dias.
Velvet Underground ou Lou Reed? Acho que é da época do Velvet o que tá rolando na minha cabeça, misturado ao som monocórdio e enfadonho dela.

6 comentários:

Delafonte disse...

Velvet Underground com certeza ...

Como já disse um amigo: "O melhor a fazer depois de cometer o ato é fugir do lugar do crime".

**** disse...

Sem pistas nem testemunhas.
Valeu pela visita!
Abraços!

Luciana Andradito disse...

claro. aqui é confortável e sempre cabe mais um.

**** disse...

Você é de casa, e sabe disso.
Bjos!

Cecília França disse...

Um dia quero ler tudo isso compilado em um belo livro, que estará na minha cabeceira.
Beijos!

**** disse...

Você é doce, minha irmãzinha!
Beijos e muitas saudades