domingo, novembro 30, 2008

Tragédia e compaixão

Brinco de estalar os dedos enquanto na TV jorram, incansavelmente, cenas de Santa Catarina. Depoimentos angustiados, aterrorizantes, entopem o entardecer. Nuvens alaranjadas adornam o céu aqui. Dá para ver o desenho negro dos pássaros através de minha janela.
Fleumático, acompanhei o drama catarinense. Minhas pernas tremem apenas quando penso que a desgraça está a poucos passos do meu amor.
Blasfema, entretanto, quem grita “egoísta, filho da puta” a mim. Talvez. Pessoas morreram, muitas por sinal. Há nada o que fazer, menos enterrá-las! Dos que restam, milhares viram naufragar suas casas, geladeiras, fogões, estantes, televisões. Somem na inanição, inação passada. Raspam o fundo da panela, cúpidos para que a borra de arroz se solte. Minha mãe começou a fazer o jantar. “Que fome!”
Nestas horas o sentimento cristão de caridade é bem-vindo, apesar de detestar Jesus. Jesus não. Era apenas um lunático que teve consciência de seu besteirol quando correu os olhos e se viu pregado: “Pai, por que me abandonaste?” Tenho tanta pena dele quanto do retardado que meteu bala em John Lennon -perda significativa. O uso reptiliano dos “ensinamentos” (inócuos como os de um professor primário municipal) de Cristo fodeu a visão humana, porém. Mesmo que as conquistas sejam razoáveis, o objetivo continua tosco, apagado, carcomido.
Simples o problema: catarinenses precisam de ajuda? Devemos auxiliá-los. É uma prova de que a avalanche não esmagou nossas cabeças, e, sim, as deles. Socorremos inflados pela certeza de que saímos incólumes, orgulho metamorfoseado em compaixão -que conceito mais finório!
As bandeiras tremulam em mãos escorregadias e empanadas. Grita um mudo, ninguém se dá conta. Mas aponta para uma coisa tão saliente quanto a barriga de grávida. Só idiotas analisam outras hipóteses. Gases, quem sabe? Empresas, entidades e igrejas unidas -ao mesmo tempo, renhidas- num alvo: pôr a carinha deslavada de bom moço.
Gostei da declaração de Bento XVI. Disse -de seu suntuoso palácio lapidado a ouro, coberto de adornos e penduricalhos, cadeiras almofadadas enormes- estar “espiritualmente presente” e partilhar do sofrimento do povo de Santa Catarina.
Sou papa! Acordei hoje abosorto com a sorte do pastor no deserto acachapante -certas vezes apenas pensamos, desconexos de linearidade. O sol torra sua pele, a encarquilha. Racha seu rosto como o arado estupra a terra. Nariz, orelhas e lábios, se tivessem sido jogados na chapa, não pareceriam tanto carnes esturricadas! Infeliz pastor! Vou desligar o ar condicionado, esfriou demais. Pronto: agora está bem melhor! Sou papa!
Cessa a chuva. Cidades se erguem nos restos tortos de prédios e residências. E as faíscas jamais pisam a soleira. Por que tantas construções entrecortando morros? Por que tanto lixo entupindo o curso dos rios? Por que tanta cidade sem planejamento algum? Depois, ainda são eleitos heróis! Anos passam, e a água carrega tudo de novo.

Obs.: um dia após ter escrito este artigo, fiz uma catarse no meu atulhado guarda-roupa. Coisas velhas, nem existiam mais. Minha consciência está tranqüila. Há mais espaço para meu terno novo.

6 comentários:

Juhhh disse...

kem eh vc^^ rsr bjo

**** disse...

sou de arapongas também...
afim de escrever e apoiar iniciativas de quem acredita numa forma menos opressiva do pensamento -já que livre, só Mathieu, em Sursi. A fim de conversar com pessoas que acreditam na oportunidade de um movimento cultural sem amarras.
Se quiser amar a Deus, ame. Se quiser xingar, xingue. Assim... rsrs

Cássio Gonçalves disse...

Pegando um gancho no último artigo que esvcreveu, quando citava Jesus...
Concordo que imagem que hoje temos de Jesus Cristo - manipulada por pessoas altamente letradas que transliteraram a bíblia segundo seus intereses e pelas religiões, que transformaram-no em motivador da resignação popular -, concordo que essa imagem é equivocada. Mas os exemplos que Jesus de Nazaré deixou, enquanto ente histórico, carne e osso, como Siddhartha Gautama ou Mahatma Gandhi, são muito valisos frente ao caos que vivemos.
Acho que, apesar de existirem ligações, Jesus é diferente de Religião. Deve haver essa separação. Existe vasta literatura oculta e apócrifa que fala do lado humano de Jesus Cristo.
O conhecimento é uma forma de se livrar da opressão do pensamento. Acho que não podemos deixar decepções pessoias e preconceitos interferirem na busca dele.

**** disse...

Caro Cássio!
Não anelo subverter seu conceito sobre Deus, Jesus ou coisa que os valha. De maneira alguma. Meu desenho de Cristo foi pintado com o pincel da idiossincrasia. Apanhei bastante até encontrar a tonalidade que acho correta.
Inegável, porém, é a conclusão de que a moral cristã empana conceitos e condutas importantes ao homem. Atualmente é um escândalo falar em egoísmo. Se não há razão quando vivo para mim, então qual é a razão? Sintomático Jesus dizer: "Pai, por que me abandonaste?"
Quem não quer transliterar a Bíblia, apenas a lê. Existe Deus mais descarado e perverso que o judaico-cristão?
Você tenta sofregamente limpar a eiva dêitica de Jesus como se retira merda da sola do sapato. Caminho bastante salutar. Acredito sinceramente. Enxergá-lo com um ser humano. E, como homem, há homens muito mais essenciais que ele. A história recente se recheia de exemplos, desde Sartre a Foucault. Raciocínios complexos, sem balouçar em aforismos vazios como os dele. Desnecessário voltar muito ao passado, voltar a Sócrates e a Platão.
Observo, no entanto, as coisas conforme elas respondem as minhas necessidades. As suas diferem, impossível haver concordância. É ótimo. Se condescendesse comigo, não estimaria suas opiniões como as estimo.
Se o conhecimento não serve para oprimir o pensamento, causar angústia, então não vale para porra nenhuma.

Cássio Gonçalves disse...

Reitero minha apreciação à qualidade do blog e o quanto é maravilhosa a Internet para quem tem coragem de colocar os seus conceitos à prova. É claro que isso deve ser feito em sites que vão além das trivialidades praticadas pela maioria dos que usam o Orkut, por exemplo. Encontro em espaços assim lugar propício.
Quanto à questão anterior, porém, acho complicado estabelecer comparações entre Sartre e Jesus Cristo, por exemplo. Digo comparações maniqueístas, tipo: um é "melhor", outro é "mais". Isso sim precisaria de raciocínios mais complexos, de uma análise de contextos históricos, descobrir se existe algum alvo pretendido por eles para a elaboração das diferentes formas de discurso, etc., etc. Deve-se levar em conta ainda a subjetividade de quem analisa, como bem pontuou. E Não posso dizer muito mais do que isto, porque – confesso sem nenhuma vergonha –, há muitos assuntos que ainda preciso pesquisar diretamente nas fontes.
Mas curti, cara. É legal discutir nesse nível, alto na minha concepção. Vejo o conhecimento como um Meio, que, claro, é muito tortuoso; mas cuja finalidade, a busca básica da Filosofia, é a Felicidade, ainda que esteja mergulhada num profundo mar de abstrações.

**** disse...

Caro Cássio!
Obrigado por suas palavras.
Espero que possamos continuar discutindo para caralho.
O mais interessante é que ninguém vence. Isto é o fodão. Quanto mais convulsões de opinião, melhor.
Abraços