domingo, julho 19, 2009

Lullaby



Cinco meses atrás. Lúcia está no banheiro, de cócoras, abraçada à privada. Tem terríveis contrações na barriga. Júlio a espera na cama. Deitado, enquanto fuma um cigarro.

- Vem cá, pelo amor de Deus, meu estômago vai se soltar. Não aguento mais.
- A gente tem o que pede. Isto é pra você.
- Estou quase desmaiando, por favor.
Júlio se senta. Encara no espelho o rosto dum anjo cheio de compaixão e misericórdia. Levanta-se, dá passos moles até a porta do banheiro. Desgrenhada, com mexas caindo no fundo da privada cheia de um líquido amarelo-esverdeado.
- Me ajuda a levantar. Me leva pr’algum hospital, por favor.
- E chegar lá sendo mais um que consente como uma loucura dessas e ainda socorre?!
- Eu te imploro.
Palavrinha idiota, pensa Júlio. Mas a comiseração pela dor alheia o domina. Enfia os braços no sovaco da mulher e a arrasta banheiro afora, pelo quarto, corredor, a encosta na parede, que a acolhe em seu azulejo cinza, gelado, o gelo comum. Ele aperta o botão do elevador. Enquanto dirige, olha fixamente os carros à frente. Lúcia se debate. Sua calcinha se encarna. Júlio para o carro na entrada de emergência e caminha vagaroso ao guichê. Dez minutos mais tarde três enfermeiros voam nos corredores. Luzes pálidas pintam de branco o teto azul-claro e se espirram no rosto de Lúcia, que sorri molemente.
Dois meses atrás.

- É tão lindinho. Se parece comigo.
Júlio brinca com os dedinhos finos que tentam agarrá-lo como a um pedaço de coisa qualquer. Lúcia limpa o nariz e se vira. Ainda há dor, ela está lá. Ele também está. E as duas coisas a machucam da mesma forma.
- Tudo poderia ter sido diferente.
- Diferente como? Você me chamou praticamente de prostituta. Pôs isto acima da gente.
- Nunca pus nada acima de você. Apenas hesitei naquele momento. Você sabe minha formação.
- Existem coisas mais importantes pra você que eu ou que você mesmo.
- Nunca teve pensamentos de uma mulher normal, nunca quis todas as coisas que uma mulher normal.
- Eu quis. Quis mesmo. Mas faz meses que não me sinto capaz de ser assim. Tenho planos pra gente e isto me incomoda. Não queria pensar assim, não queria ser assim. Mas é impossível controlar.
Olha para o teto. As luzes estão acesas, apesar das três da tarde. Agora, porém, elas não mais brincam, não escorregam sobre sua cabeça como três meses antes. Estão amareladas, apodrecidas.
- Vamos tentar, apenas tentar.
- Nunca me respondeu o que a gente faria se tentasse e não conseguisse.
- Esta é uma decisão que não vai caber a mim. Peço só pra gente tentar.
- Não sei até que ponto pedir te compromete com coisas futuras.
- Amo você.
- Ama isto também.
- Escolhi você.
Um mês atrás. Júlio assiste à decisão do Brasileirão. Um ganido plangente, fino e agudo, se solta do quarto sem decoração alguma e se despedaça nos seus ouvidos.
- Faz alguma coisa, eu quero só assistir ao jogo. Só isso que peço.
- Tô há meia hora tentando, mas parece que é pirraça. Faz de conta que eu nem tô aqui, simplesmente me ignora.
- Leva pra outro lugar, pelo amor de Deus, eu tenho que me concentrar, meu time precisa de mim.
Vinte e cinco dias atrás. O sol morre devagar numa densa mata de cimento e tijolo. As janelas do 24º andar sustentam carbono igual às do primeiro. Lúcia encosta seu queixo no ombro do marido. Roça, suave e melancolicamente, os pelos desnudos abaixo do umbigo.
- Minha mãe me levava prum parquinho todo finzinho de tarde. Eu ficava lá, brincando no balanço e pensando o que seria de mim se não a tivesse mais. Eu chorava, chorava alto, dava pra escutar por toda a Aclimação.
- Você deve ter sido uma menininha muito mimada.
- Talvez até tenha sido. Mas acho que não do jeito que merecia. Ela me colocou ali, me pôs no seu Mundo. Talvez devesse mais pra mim do que pudesse dar. Não sei. Meu pai sempre me disse que tudo é pálido quanto a minha pele. Não sei se era tudo o eu, ou tudo o tudo.
Lúcia se solta de Júlio e vai à penteadeira. Um lenço branco que ela usava nos dias em que se sentia triste força as veias do pescoço. Afrouxa-o.
- São coisas que não têm volta. É um Mundo novo que se abre pra gente. Difícil e complicado como deve ser. Até que ponto você tem certeza disto?
- Os sentimentos estão te atormentado. Eu não disse nada. Precisa acreditar que esta seja a decisão certa.
- É me pedir demais. É a que menos dói.
- Não poderá mais ver ninguém.
- Não quero voltar atrás. Tenho muito medo do que possa fazer com isto se recuar agora. Quero proteger isto. Me sinto responsável por isto.
- Eu te disse que a decisão seria sua. Pois é.
Cinco dias atrás. As rodas do avião andam devagar enquanto se posiciona para subir. Lúcia não desgruda o rosto do vidro. Antes, o medo a fazia nunca viajar na janela. Agora tem ele. Júlio o segura, evita que qualquer parte toque Lúcia. Duas finas linhas correm por sua bochecha e explodem em seus seios vazios.
- Me promete que a gente vai ter uma vida feliz, como a gente tem direito.
- A gente vai se arrumar.
Dois dias atrás. Estão num grande campo aberto, em meio ao amarelo outonal de Quebec. O Sol não espanta o gelo fino que sopra de lado. Andam devagar.
- Aqui é o melhor lugar. Logo, logo isto vai estar resolvido, e vida de nós três vai recomeçar. Bem, muito bem.
- Deus, proteja isto de todo o mal. Que sua vida seja feliz, como a nossa está prestes pra ser.

Lúcia chora, estranha sua voz, gutural, rouca e vacilante. Júlio o carrega a uns arbustos que coroam a porta principal. Tudo se silencia. Ajeita calmamente as cobertas, cobre-lhe as orelhas. Passa-lhe a mão na testa, curva-se e lhe beija o rosto. Lúcia se aproxima e, pela primeira vez, toca sua boca naquelas bochechas tão brancas quanto às dela. Júlio tem de levantá-la. Saem, virando-se amiúde.
Hoje.Lúcia está sentada na poltrona do corredor. O comandante acaba de avisar que atingiram velocidade e altitude de cruzeiro. Segura firmemente a mão do marido.

- Me sinto totalmente desamparada quando percebo que nunca mais vou ver minha mãe. Vai me fazer tanta falta! Queria tanto que ela estivesse aqui, agora!
- Vai passar.
- Dói demais. Tenho medo de não dar conta.
- Vai sim. Em Argel vai se sentir bem melhor. Que mal tem a gente ser feliz?! É direito.
O avião abre caminho em meio a grossas nuvens.
* Capa do álbum Ágætis Byrjun, da banda islandesa Sigur Rós.

7 comentários:

googala.opsblog.org disse...

espetacular

Gonzaga Britto disse...

Excelente. Você demora a aparecer em seu próprio blog mas quando aparece sempre oferta aos seus leitores a qualidade do trabalho produzido em cima de brasas, cinzas, luzes, névoas, brilhos & tudo o mais que se oculta na alcova do coração.

Cris Carvalho disse...

Ô Seu Moço, agradecida!

=)

Luciana Andradito disse...

adoro sigur rós. você faz várias imagens em minha cabeça, paralelas, gosto da forma como dá e tira. besos

Cássio Gonçalves disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Cássio Gonçalves disse...

Estou reunindo material para fazer algo diferente. Deve demorar um pouco. Mas, enquanto isso, continuarei acompanhando blogues de qualidade como esse, onde a postagem atual não foge à regra.
Valeu por lembrar!

Cris Carvalho disse...

'O mundo não é este que vemos, o mundo ainda está pra ser feito'

Uma semana de sorrisos largos procê!

abraço