quarta-feira, setembro 16, 2009

Amor

- Você vai continuar parada aí até quando?
- Até quando eu quiser. Não há mais nada a se discutir neste ponto.
- Você não consegue conversar.
Romeu jogou as mãos atrás da cabeça. Encostou-as no travesseiro amarfanhado. Na cama, o cheiro dorminhoco esfumaçava o ar, tornava-o turvo, mefítico.
- Você é um idiota, um estúpido, um estúpido que sempre deveria estar no mesmo lugar. Mas agora se acha capaz de mover, andar, sair, flanar.
Magda observava o mesmo mendigo de dois anos antes. Ele continuava ali, cabriolando entre cacos, sacos, e potes. O executivo de ternos claros saltitava tateando as grades do estacionamento externo. Sua garagem continuava muito apertada.
- Eles continuam iguais. Por que os abandona? – Virou-se bruscamente a Romeu. – Por que os abandona?
- Eles quem?
- Eu continuo a mesma. Por que me abandona?
- Abandono você e mais quem?
- Seus irmãos.
- Parece louca. Sabe que só tenho um.
- Não me venha com esta!
Magda bateu a ponta dos dedos na enregelada janela gotejando melancólicas bolhas de orvalho. O tom fleumático da manhã junina refletia-se nos seus irritados olhos castanhos. Beijou vagarosamente o inerme e irretorquível vidro pálido. Amorteceram os lábios.
- Devia ter matado você! Devia ter matado você – gritou na segunda vez. – Você me deve a vida por isto.
- Quanta bobagem! - Romeu permanecia imóvel. Ruga alguma lhe escorregava na testa.
- Não acredita, mas deve sua vida a mim. A mim, somente!
- Papai poderia dizer a mesma coisa. – Levantou-se, foi ao banheiro mijar. A porta aberta, escancarada, arregaçando aos olhos de Magda a repugnância que a atormentara.
- Não vai dizer nada? – esguichou entre os dentes debochados.
- Ah! Faça o que quiser!
Desgrudou-se do vidro e se sentou na beirada da cama arquejante. Os lençóis manchados pelo suor grosso de Romeu. No canto, Renato Machado encenava as seriedades jocosas da quinta-feira recém-sepultada. “Cadê o jornal da Globo?”, pensou ela.
Romeu gritou ao ver no espelho o controle apontando à TV.
- Deixe aí. Quero ver as novidades.
- O que esperar dum imbecil que leva a sério os números de picadeiros dos grandes engravatados!
Desligou. Romeu, sem lavar as mãos -notou bem Magda- aproximou-se.
- Porco filho da puta! Nem teve a capacidade de tirar a imundície do seu pinto!
- Não vou perder a paciência hoje, justamente hoje. – Romeu lhe tomou o controle e a luz artificial feriu de novo as brancas paredes do quarto. Agora era Renata Vasconcellos quem tagarelava.
Chegara a redenção. Ele, que a esperara anos e anos, a via perto, apalpava-a. Com Romeu se encerraria o fado dos Avelar, estirpe repulsiva, pusilânime. Entretanto reivindicava agora o poder de espernear.
- Duvido que consiga.
- Você perdeu o direito de ter dúvidas sobre mim. Um braço amputado, apodrecido, deixei de servi-la.
- Sobra-me outro. Além do mais, desligado não há o que você fazer.
O grau de influência de Magda sobre aquele ser esgrouviado, sem se escanhoar, acabara, acreditava ela. Quando a possessão se encerra, relacionamentos fogem, correm ao vento. Amor, palavrinha idiota. Amar, sabia bem Romeu, imanava-se na falsa modéstia e no acolhimento terno e infantil dum umbigo empurrado para dentro.
- Há outra pessoa. Há alguém. Diga-me – debateu-se Magda em cima do ranço úmido encastoado por Romeu no seu lado da cama.
- Sempre assim! Não há ninguém, simplesmente.
Falava a verdade Romeu. Queria apenas propugnar por um espírito que não era mais dele. Estranhava-se com a afasia da pseudoliberdade na era pós-Magda. Magda era sua mãe, antes de ser Magda. “Difícil abandonar família.” Altiva, decidida, firme, sempre fora Magda, exceto num curto espaço após o estupro. Naqueles tempos deixara de ser Magda. Soltara-se na afluência de outra de dominação pior que a dela. Entretanto, havia mais de um ano que Magda voltara. Estranhava-se, extasiava-se Romeu.
- É a vez de minha Síndrome de Estocolmo acabar.
- Não foi a você que fizeram gozar, seu idiota.
- Gozar, gozar! Quem disse a você que num casamento o gozo importa!– Romeu abotoava o paletó velho, porém digno, bem limpo e passado. Os pés inchados pela gota o incomodavam.
– Sentiu dó do marginalzinho, diga. Queria colocá-lo no colo, dar-lhe de mamar. Tem a chance agora.
- Faz tanto tempo! Por que repisa?
- Guardei para a hora oportuna, Magda. Gente é assim: suja e vingativa. Não por maldade, mas conveniência. Convém a mim escarrar-lhe na cara agora. Somente agora.
Encastoar as unhas naquele pescoço de galo despenado pouco resolveria. Como atacar um muro, um travesseiro ou outra coisa inanimada. Romeu soltara-se dela. Quando se soltara, levara também toda e qualquer oportunidade de reverberação. Magda se contorcia por Romeu ter lhe escapado. Um filho que se acha maior de idade e reivindica direitos.
- Direito não tem. Tem deveres. E muitos, seu crápula!
- Crápula! Eu?! Pare de me manchar com epítetos vergonhosos.
- Epítetos! Deu para falar bonito?! Só vejo estas coisas em livros. As pessoas escrevem porque são impossíveis de viver.
- Talvez.
Magda levantou-se e zanzou pelo quarto. Nos cantos mal asseados estavam pentelhos de Romeu. Pentelhos dum símio passado do tempo e que por isto se achou homem. Pentelhos de alguém que tem pentelhos, e tão apenas eles. Romeu observava os prédios da cidade enevoada na manhã fria e indiferente. Suas malas jaziam ao lado da cama. Três grandes valises com porcarias dum estúpido cotidiano imundo.
-Tchau. Depois a gente conversa. Estou atrasado.
Três grandes valises debruçadas num azulejo esmaecendo.

2 comentários:

Mauro Castro disse...

Bukowsquiano.
Há braços!!

gugala disse...

sua assinatura na escrita. Muito legal
abç