domingo, fevereiro 21, 2010

Uma história sobre a ovelhinha

Cíntia brinca enroscando a manga da blusa maior que ela nas árvores, os pezinhos tortos chafurdam nas raízes transpirando a chuva gélida plangente do comecinho da tarde. Ardem friamente; mas está tão bom ali, escorregando entre os troncos e observada de soslaio por braços ternos e castos, que Cíntia espanta o frio pensando no trinado daquelas copas quando o Sol vem alto, igual daquela vez. A menos de 20 metros Marta esguicha um sorriso mudo e mole, porém belo, à filha. Marta tem 23 anos; Cíntia, cinco.  
- Mamãe, vô girá! – Cíntia tira a luva e arregaça as mangas prendendo os dedos exangues num Ipezinho glabro. 
- Cuidado pra não cair de fuça no chão.
Cíntia chegou quando Marta não fazia questão alguma, a mínima que fosse. Roberto a amava, ela sabia. Tudo bem. Contudo Marta tinha uma faculdade a começar e alguns rascunhos de futuro presos a enlevos a desenvolver.  
- Tô grávida. 
Estavam neste mesmo parque. 
- Tira. – Disse sem olhá-la. – Amanhã tenho algumas coisas a fazer na cidade ao lado. Tem médico bom lá pra dar jeito nisso. 
Marta fremiu. Era verão e o Sol cegava o laguinho. Nem os patos ficavam ali respirando sem ronronar. Não queria a criança, mas abortá-la?! Não era uma frieira, um furúnculo; era uma criança.
- Quantas vezes já foi neles? 
- A questão é que não quero ser pai agora. Mais tarde a gente pode até ter uns dois. 
- Não vou tirar, é meu filho.
- Cria sozinha então. – Roberto se levantou, evaporou um beijo seco na testa dela e caminhou ao carro. 
Ser mãe era o que Marta ia ser a partir dali. A faculdade esmaeceu. 
 - Te amo. – A menina diz engalfinhando-se no colo da mãe. 
- Também te amo, minha pequena, também te amo. – Passa resignadamente as mãos nos anelos tenros, brilhantes, da cabecinha. Puxa-a para si queimando-lhe o rosto com beijos. 
Mamãe beija babando e, naquele frio, ô, duro de aguentar! Cíntia não liga. Um pedacinho da mamãe escorrega-lhe gelando o rosto, faz cócegas e, de algum jeito, esquenta.
Duas crianças, uma de quase 18 e outra se enroscando no cordão umbilical e dando-lhe chutes no estômago. Marta vomitava frequentemente, os enjoos duraram muito mais que os três meses prometidos pelo médico. Quando nasceu a menina pediu à mãe que fosse ao cartório e pusesse Cíntia, igual à velha. 
- Amo vocês duas da mesma forma, o mesmo amor puro e mágico; nada mais justo. 
Marta arrumou trabalho como caixa num supermercado grande da cidade; Cíntia ficava com a avó pensionista. 
- Você é a coisa mais importante que tenho, me desculpa se você sofre. – Vira-a, olha os olhos carvão, passa convulsivamente a mão no rostinho e nas perninhas. O Sol fenece atrás duns morros e o vento corre mais, congela mais. 
- Mamãe, tô cum fome – um anjinho se esfregando para esquentar espirra na cara de Marta o pacote água e sal que roubou à tarde de uma das prateleiras. Abre a mochila e dá a bolacha ao anjo. Acomoda-o no banco e tilinta a caneca na torneira esquecida num canto do parque. Lava-a, enche a caneca que empalidece, solta gotinhas miúdas molhando-lhe as luvas. Enxuga a caneca na blusa e entrega ao anjinho. 
Roberto tinha ido há muito. Cuidou da filha apenas com a ajuda da mãe. Ano passado Cíntia, a mãe, morreu. As contas, divididas em duas, se multiplicaram em duas; cresceram quatro vezes. Cíntia, a filha, começa a estudar a seis meses, as duas vão cair fora da casa antes. 
- Vô compá um monte de arve dessa pa nóis quando quescê. 
A escola não vai ajudá-la a falar muito diferente, Marta sabe. A escola não vai lhe dar uma casa, só um comprimidinho para sonhar em ambientes alhures ao azulejo descascado de qualquer canto porco em que caírem. A escola vai fazê-la detestar cada vez mais a mãe ignara que não consegue pô-la num lugarzinho limpo e quente. Seu rosto se intumesce com o sal gorgolejante de duas bolas tristes e cansadas. Mas talvez a menininha algum dia sinta orgulho como ela sentia da mãe, que a criou sozinha, deu-lhe escola e a ilusão de fazer letras ou jornalismo ou filosofia ou pedagogia ou medicina ou direito ou qualquer um dos quase 20 cursos da universidade pública da cidade ao lado. Soltou um esgar e preferiu mãelosofia e caixologia. Cíntia também terá estas duas opções, apenas elas. Marta vê. Ainda assim se suas perninhas e seus pezinhos tortos ficarem de pé após a fome que encosta. 
O médico lhe disse que o anjinho coxearia para sempre, resignação e basta! O fórceps fez seu trabalho: retirar e deformar espertos que sabem que lá dentro é bem melhor e mais humano que aqui fora. Andou alguns anos com ferros entrelaçados em couro que queimavam mais de três meses de salário de Marta. Mas Cíntia ainda vivia e as contas morriam mais fáceis. 
- Mãe, me dá batom!
- Vou passar em você um pouquinho para não lambuzar a boca. Você é a menininha minha, tem que ficar bonita sempre.
- Tá fio. Vamimbola? 
- Daqui a pouquinho, daqui a pouquinho... 
A menina ainda tem fome, fome de arroz, feijão e um bife tapando o prato. Para que ir embora? Salvou a filha quando ela teve sarampo, catapora e caxumba; agora tem de salvar a si mesma, mas a doença é mais complicada. É uma doença aqui dentro, bem aqui, se você enfiar a mão vai pegá-la, apalpar essa coisa mole e enrugada que dói. Marta entende que se enganou quando disse à mãe que a amava do mesmo jeito que a sua filha. Ama Cíntia, a filha, muito mais, uma proporção infinita de vezes. É um amor tenro e vicejante. Minha ovelhinha, Marta chama-a de minha ovelhinha. 
- Vem cá, minha ovelhinha. Senta no meu colo que eu vou te esquentar. 
- Tem passalinho ali.  
Faz horas que os poucos pássaros invernais ciciam baixinho apenas a elas, todo mundo se foi antes de essa penumbra lúgubre esfumaçar a água lá embaixo. 
- Vem mais perto, mais aqui com a mamãe. – Embala Cíntia em seu peito. Passa a mão no rosto da menina, retira a luva e vê que as bochechas estão duras e ressequidas no inverno sem colchas ou cremes. Esfrega as mãos na face para esquentá-la. Quer torrar Cíntia num amor fervilhante. Chora. Esfrega mais rápido. As mãos raspam o pescoço em que moram amígdalas revoltosas por qualquer friozinho, imagina num tempo desses! Friccionam-no mais. Pintam um colar no pescocinho e se cingem, vão cingindo, a menina olha a mãe e solta uma careta, Marta chora, o torniquete comprime, a menina se espreme, Marta a observa chorando, as duas, as mãos querem se encontrar, os bracinhos descansam no colo da mãe agora. Marta suspira e passa as costas das mãos nos olhos. Levanta e se despe das duas blusas de lã, ficando com uma camisetinha de algodão. Na mochila refestela o pescocinho, enrola Cíntia nas blusas, o vento racha e cristaliza as ripas do banco, esquadrinha se há alguma parte desagasalhada. Dá nela um beijo, o beijo molhado da mamãe, e rasteja ao telefone público, semicerra os olhos enquanto bate nas teclas. 
- Emergência, boa noite! 
- Vem pro Parque dos Pássaros – tranca os lábios frementes –, corre. Matei minha ovelhinha. Vem logo se não ela fica resfriada. 
Solta o telefone e volta ao banco. Ajeita a menina no colo e a balança cantando canções de ninar, as mesmas que Cíntia, a mãe, lhe cantava, as preferidas de Cíntia, a filha.  
 

*** Antes de conhecer uma história parecida com esta era-me impossível pensar o amor desta forma. Soube de Eva Martinet e Cady através da matéria do
Le Monde. A matéria está reproduzida e traduzida aqui. Era nesta história que pensava quando fiz Lullaby. Mas na época não consegui escrevê-la da forma de agora. Pensei que escrevendo Lullaby a forte impressão se apagaria da minha cabeça. Engano! Eva Martinet voltou a me mesmerizar depois que vi no documentário Tempo de Viagem o cineasta Andrei Tarkovsky dizer ao poeta Tonino Guerra que tinha na cabeça um filme falando de um homem que mata a mulher porque ela mente. Ambos se amam, mas ele não consegue mais viver com suas mentiras. A única coisa que unem os meus dois textos é o amor. No conto do ano passado há um amor que expele, se assim se pode dizer, afinal Lúcia deixa o filho perto dum orfanato numa cidade rica, onde sabe que ele terá ótimas chances de ser adotado por pessoas abastadas e se dar bem na vida. “Liberta-o” do ódio plangente que nutre, um ódio que a faz amar a criança, apesar de a gente não compreender nada. Agora falo dum amor tradicional, aquele amor protetor de mãe, mas exteriorizado dum jeito que a gente também nunca vai entender. O estrangulamento é a pura espontaneidade do desespero. Quis colocar esta breve exegese talvez apenas para dar crédito a quem o merece, como se alguém precisasse de minhas considerações. Abraços!

8 comentários:

Serbão disse...

cara, estou virando fã dos teus textos. muito bom e forte.

**** disse...

Valeu Serbão, muito bom saber que tá curtindo.

googa disse...

ótimo mesmo! sempre

**** disse...

Valeu, grande Guga. Todos vocês são de casa.

gugala disse...

acabei de reler, de novo, e cada vez me surpreendo mais. Gde texto!
abraços

**** disse...

Você relê pela macumba que fiz, ahahaha...
Abraços!

Serbão disse...

eu reli tbem.... muito bom. vc gosta do Dalton Trevisan? senti isso ao reler.

**** disse...

Curto muito Dalton, apesar de fazer certo tempo que não leio nada dele. O conto Penélope é muito foda.