sábado, maio 08, 2010

A Salvação - Parte I

Era um simples café da manhã em que Marcos e Elisa conversavam sobre coisas complicadas.
- Seus olhos vivos me dão medo. 
- Porque ainda você não conhece. 
Marcos tinha 22; Elisa, 19. A mãe se esvaziava numa febre de 39. Escorada em almofadas mofadas brancas, pendida à direita, amarfanhava as bordas da colcha. 
- Ela só piora, talvez a gente devesse carregar ela prum hospital. 
- Elisa, tudo que a gente precisa tá aqui. 
Marcos se levantou tirando as xícaras da mesa, a toalha respingada de farelos de pão. Elisa ajuntou as pontas e saiu ao quintal pra chacoalhar. 
- Você cria formigas. 
- A gente tem que levar ela prum hospital. 
- Você cria formigas. 
- Não está escutando o que tô dizendo? 
- Sim, claro, que você não quer admitir que cria formigas. 
A mãe enrolava-se num edredon quente como o inferno, os ramos vicejantes secavam, a mãe bruxuleava. Marcos, escorado no batente, olhou pra dentro. Estava ela lá, ciciando palavras incompreensíveis. 
- Mamãe, tudo o que senhora precisa tá aqui. É errado ir procurar num hospital ou em qualquer outro canto. 
- ...
- Fala um pouquinho mais alto minha mãezinha. 
- Talvez não seja grande coisa, afinal.  
- Eu tô aqui. E a senhora sempre vai tá comigo. Sempre. 
A menina esbarrou em Marcos e se recostou ao lado da mãe. Chorara, chorara muito. Mas os olhos estavam agora apenas inchados e coçando e ardendo. Agarrou-se aos cabelos negros e molhados e puxou-os com força, trouxe aquele semblante curvado aos seios redondos e brilhantes, o decote desceu e Marcos se virou a um passarinho que espreitava da janela.  
- Você andou chorando, minha filha. 
- Não, mamãe. Meus olhos estão irritados, só isto. 
A mãe sorriu, fungou. O cheiro se soltando da filha dizia o quanto a sua doença a matava. Elisa não punha os pés nos clubes sabadescos havia meses, conversava apenas com ela, com o irmão ou com alguém que insolitamente se lembrava duma doente imprestável num catre torto e ensandecido dum quarto escuro e mormacento no canto esbodegado da cidade. 
Elisa tinha devaneios e pensava casar-se algum dia, depois que a mãe morresse, a mãe sabia. Casar pra ter alguém com quem conversar nos intervalos das novelas abafadas, mosquitos sarapintando as lâmpadas. Um representante duma fábrica de móveis lhe cairia bem. Estes vendedores tinham dinheiro e poucos anseios intelectivos, falariam de coisas doces, fáceis. Pernas grossas, o rosto levemente oblongo dava a Elisa uma compleição santificada; bunda grande, quadril fino e cantos encontrando a angulação numa boca redonda e saliente. 
- Você tem que sair, minha filha. Aproveitar a noite.
- Nunca. A senhora deste jeito!? 
- Eu me arrumo. Você e seu irmão têm muito a viver. Dá uma olhada pra ele. Vê como tá abatido. 
- Tô muito bem, mamãe. 
Marcos sustinha uma curvatura irônica no sobrecenho. As bochechas rosadas e sem espinha. Pele lisa e leve como a da irmã. As órbitas azuis serenavam suas expressões, afeminavam-nas.  
- Tô aqui pra dar a comunhão à senhora. 
- Que papo é este? Virou padre agora? Virou padre, meu filho, virou? 
- Não enche a mamãe com histórias doidas. 
- Ela precisa saber que os dias correm mais rápido.  
 Analgésicos. Analgésicos não prolongam existência, mas sofismam suavemente a dor. Dá prazer farfalhar uma ferida anestesiada; a dor está ali, brinca em cima dela, a prende, não a apaga. É bem melhor; o orgulho de tocá-la, intimidação. A dor lateja, viceja, mas amarrada.

2 comentários:

Cássio Gonçalves disse...

As crônicas também voltaram. Obrigado, ****.
Estarei acompanhando suas ótimas provocações. Logo, postarei um link seu no meu sidebar.
Abraço!

**** disse...

Tô te seguindo, garoto. Abraços!