domingo, março 06, 2011

Casando

Minha mãe chega por trás e põe a mão no meu ombro. Curva-se um pouquinho só, encostando seu queixo na minha cabeça que olha pra fora, pruns restos de casa ao fundo, onde ela queria que eu morasse, não pra economizar a grana do aluguel. Estamos na cozinha de azulejo branco e do outro lado da janela o concreto meio curvo pelo desvio da caixa séptica forma poças com água esguichada ainda de manhã. Eu estava deitado quando meu pai atendeu ao telefone e descobriu que o serviço de casa havia sobrado pros dois. Eu estava deitado com os olhos abertos e mal os podia ouvir dando vassouradas no chão atrás da porta. Foi uma semana dura, uma semana de sensações pesadas por tudo o que acontecera desde sábado, quando houve uma festa e resolvi me comportar como todas as moças recatadas, exceto pela bebida. Pouco me lembro de como cheguei em casa, mas cheguei com a consciência tranquila e me achando bem idiota.
Ela e meu pai falam de como pretendem acabar com a casa dos fundos e dividir a da frente. Minha mãe tem um sério problema nas mãos e não acha alguém capaz de deixar as suas casas do jeito que quer. Mas nós três entendemos, há mais humanidade ou solidão humana nas frases ditas de forma direta e nem por isto menos soturnas do que um problema crônico de saúde; meu pai sabe, eu sei, ela sabe. Tenho 28 anos e nunca a preparei pro que vai acontecer. Estou a pouco mais de um mês pra sair de casa, não vou pra longe, mas vou sair.
Faz quase seis anos que estamos juntos e vamos ficar mais perto dentro de um mês e meio. Faz quase seis anos que estamos juntos, mas faz quatro que estamos juntos muito longe um do outro, pra ser mais exato, 509 quilômetros que me levaram a uma acomodação e a única saída encontrada, talvez houvesse outras, se abre daqui a pouco mais de um mês.  Bom, mas estou dizendo de forma errada. Vou começar de novo.
Desde que terminei a faculdade não causei nenhum tipo de problema pra minha mãe e ela deve ter desencanado de vez que alguma vez eu pudesse ter fumado maconha por exemplo. De todos os momentos sufocantes de uma vida em família meu pai e ela faziam questão de que eu participasse, sei lá, por ser o único dos filhos conseguindo ganhar no fim do mês mais grana que ele, e não era grande coisa o salário de um ou do outro. Mas lá estava eu dando meus veredictos com ares professorais e os dois escutavam e escutavam com atenção. Minha opinião entrava neles como uma homilia, suas decisões saíam embasadas na voz dum filho filho da puta de saco cheio. Como caçula tinha absorvido a composição corpórea de meus três irmãos mais a dissimulação de quem viu mãe e pai chorando enquanto crescia e concluiu, fazer pai e mãe chorar é horrível, dá remorso, mas não fazer o que eles gostariam era sinal de que estava vivo, não era uma mera extensão dos braços e dos pés e da cabeça daqueles que te colocaram neste mundo pra você ser feliz; eles nunca passaram perto desta palavra tão gordurosa e lamurienta. 
Minha mãe mantém o queixo encostado na minha cabeça pensando coisas. Imaginando, quem sabe, que nunca mais me verá tão despojado nesta cadeira numa tarde de sábado de tempo cinza e gostoso, um friozinho bom, no entardecer terno; os últimos entardeceres têm se tornado cada vez mais ternos pra mim e pra ela. Tão desesperados como os de Saturno comendo seu filho estão meus olhos. Ela me ama, eu a amo e o amo, e a partir de agora nossos pés precisam trilhar trilhos diferentes, está na hora de virar homem, de deixar de ser filho, de crescer, de todos aqueles ajuntamentos de expressões cafonas repetidas pelas pessoas como papagaios bestas. 
Com a mão esquerda entrelaço seus dedos enquanto ela diz como pretende derrubar a casa do fundo, que tem só dois cômodos, e dividir a da frente, com 12, já que serão só três: ela, meu pai e um de meus irmãos e seu pâncreas parecendo uma bola de basquete. Ela vai dividir a casa, não aguenta limpar um mausoléu desses! Aquiesço e dou uma leve apertada nos seus dedos (Neste momento, enquanto escrevo, ela abre a porta do quarto, me olha, sorri, fica sorrindo por longos 15 segundos e volta a fechá-la). Ela e meu pai rabiscam seus planos em cima do meu rosto arredondado e obscurecido, olho pra eles e pra fora e me aborreço ao imaginar aquele quintal aberto sulcado de muros e portões e gentes estranhas, estranhas a mim, estranhas a este lugar que carrega grande parte deste moleque crescido. Meu pai se fodeu e fodeu a sua saúde durante sessenta anos de trabalho pesado, está com sessenta e sete!, e o máximo que conseguiu foi uma casa mais ou menos - e relativamente grande -, uma Blazer 97 e uma casinha na praia, onde, faz quase dois anos, não vai. Como disse, a casa é mais ou menos, é bem velha, de meados da década de oitenta. Mas foi ali que os netos, filhos da minha irmã, caíram, se levantaram e caíram de novo, que eu sujei um dia a parede de barro porque aquela cor clara já tinha torrado a pouca paciência de meus cinco anos e ele me fez lavá-la, e depois de lavada pedi pra mãe ajuntar as minhas roupas, eu ia sumir -quando passava por ele ou fechava um olho ou emparelhava as mãos espalmadas sobre o rosto pra não vê-lo- que a minha irmã casou numa festa embaixo duma lona e eu fui padrinho de alianças, que meu irmão do meio cortou minha cabeça duas vezes, que a minha mãe chorou num sábado de manhã ao me ver deitado sujo e ainda cagando de bêbado aos quinze anos, e que me ajoelhei ao lado da cama e pedi a Deus que consolasse minha mãezinha porque eu nunca mais ia fazer aquilo. 
Os dois vão retalhar o que construíram durante longos carregados anos pra que a perda de mais um filho não ecoe tão gravemente pelos quartos lisos. A família fica menor crescendo. E justamente na hora em que estamos indo direto pro fundo. Eu aperto as mãos dela, a levo a minha boca e a beijo. Me levanto. 

6 comentários:

Joyce Barros disse...

"Sensível" seria uma denifição ao mesmo tempo justa e contrastante com o seu estilo. Belo drama real/ficcional relatado. Interessante a citação de Saturno nesse texto onde menciona seus 28 anos, diria um astrólogo. Quanto a Deus, sempre está nas suas orações rsrsrs.

**** disse...

Ahahahah, acho que sou sensível como um elefante. rsrsrs. Pra mim o quadro de Saturno devorando o filho é um dos mais magníficos de Goya. Fico horas a fio olhando este quadro. Abraços!

Cássio Gonçalves disse...

Aliás, parabéns!

**** disse...

Ahaha, obrigado!

Cecília França disse...

É, irmão, sei bem como são esses olhares parados, longos, sem dizer palavra, mas cheios de tristeza. Parece que vamos morrer! E, em partes, morremos pra certas coisas e renascemos pra outras. É piegas, mas a mais pura verdade. Sorte sua, da sua mãe, seu pai e sua casa velha que você vai morar há apenas algumas quadras...
Beijo!

**** disse...

É... também acho que me dei bem nisto.
Beijo!